domingo, 7 de outubro de 2012

O DEVORADOR DE LETRAS - PARTE III


Enfim, o corpo de Graziela foi liberado pelo IML para ser sepultado. Era inacreditável que, desde os primeiros indícios de que o grupo estava sendo ameaçado a morte da amiga e o enterro, somente cinco dias haviam transcorrido.
Augusto meditava nesta situação quando o telefone tocou e Ester o avisou que os atos fúnebres se dariam as 16h. Como fora sempre o desejo de Graziela, o corpo seria velado na funerária de Carlos, também componente do grupo, sem qualquer espécie de ritual religioso (ela não era uma mulher convertida, embora alegasse que tinha lá suas crenças), com o caixão lacrado. Após duas horas, tempo que os amigos teriam para conversar e contar piadas ao lado de seu esquife (ela não tinha familiares), Graziela deveria ser cremada sem a presença de qualquer pessoa.
Suas cinzas seriam imediatamente eliminadas num local desconhecido que ela escolhera e somente Carlos sabia e deveria guardar segredo sobre isso. Estava no contrato. Embora os amigos nutrissem uma curiosidade mórbida sobre o assunto, nunca ousaram perguntar a amiga que destino era esse. Graziela: sempre muito discreta. “E um tanto esquisita”, pensou Augusto. “Mas uma excelente amiga. Vou sentir saudades”, e segurou uma lágrima que queria teimar em cair.
Ele não era conhecido por sua capacidade de demonstrar emoções, embora todos o considerassem muito gentil e dotado de grande compaixão. Às vezes, atitudes falam mais alto que palavras.
Augusto arrumou-se tristemente. Sabia que a amiga ia fazer uma falta enorme, apesar dos outros a acharem excêntrica. Talvez ele fosse o que mais iria sentir a ausência. Mas nunca mencionou o assunto a ninguém, nem a ela. Certamente Grazi se ofenderia. Optara por ser solteira e não gostava de nada que se tratasse de sentimentalismos.
Ele suspirou. Enfim, caso encerrado...
Quando estava enfiando a chave na fechadura para abrir a porta e sair, ouviu um barulhinho de algo sendo empurrado por baixo da mesma. Olhou para o chão e viu um envelope, com o nome do destinatário em destaque.Abaixou-se rapidamente, enquanto pensava: “Ah! Não. De novo não!”.
Infelizmente, sim. Ah! Sim, era a indesejada carta que eles estavam esperando desde a morte da amiga. Ele virou rapidamente o envelope. Estava lacrado. Abriu a porta aos trambolhões e olhou para os dois lados da rua. Mas não viu ninguém suspeito na área.
Enquanto os fiapos de seu cabelo na nuca voltavam ao lugar normal, ele meteu a carta no bolso interno do paletó, fechou a porta agitado, tremendo, olhando por cima dos ombros, com medo de ser apanhado de surpresa.
Dirigiu-se rapidamente para a funerária, que ficava perto de sua casa, de forma que ele não precisava pegar o carro para ir até o local. Decidiu esperar até o fim do velório para saber dos amigos se eles também haviam recebido mais uma daquelas cartas misteriosas.
Casualmente todos os dez membros do antigo clube chegam ao local ao mesmo tempo. Quando se viram perceberam imediatamente que todos haviam recebido o maldito envelope. Talvez isso tenha contribuído para a tamanha pontualidade do grupo, pois chegaram exatamente as 16h na funerária. Resolveram, embora tacitamente, ficar em silêncio sobre o tema. Aproveitaram para trocarem abraços e beijos ali mesmo na entrada, enquanto os pedestres passavam. Augusto sabia, assim como os demais, que era melhor tratarem deste caso após o velório.
Quando estavam em meio a essas expressões de afeto, como para adiar o momento de verem o caixão lacrado da falecida, Augusto percebeu pelo canto do olho uma figura estranha deixando o local sorrateiramente. Não conseguiu ver o rosto, pois a pessoa caminhava rapidamente, com ombros encolhidos, chapéu enfiado até a altura dos olhos, cabeça baixa. Vestia camisa e calça pretas. Parecia um homem de costas, contudo, Augusto não sabia precisar o que, mas algo no seu andar revelava que também poderia ser uma mulher.
-Hei! Pessoal: vocês viram aquele cara que saiu da funerária? Esquisito ele.
-Quem? – perguntaram dois ou três, enquanto todos se voltavam para Augusto.
-Não olhem para mim, olhem pra ele. Aquele lá. – e apontou o dedo em direção ao entroncamento das ruas Aquidaban e Luiz Loréa.
Mas era tarde. Quando todos viraram os rostos naquela direção, a pessoa já tinha dobrado a esquina. – Droga, vocês não viram! – exclamou irritado Augusto. – Mas afirmo que era alguém muito estranho.
-Tu tá vendo coisas. – disse Laura, uma moça na casa dos 25, estudante de Psicologia e segundo Rafael, a mulher mais bonita que ele já conhecera. – Além disso, podia ser outro cliente da funerária.
- Não, não imaginei não. E algo me diz que eu conhecia pessoa. – defendeu-se Augusto. – Tenho certeza. Já vi em algum lugar. Mas não sei explicar quem é ou onde vi.
- Tu sempre foi meio sensível, Augusto. Essas cartas estão mexendo com tua imaginação, só isso. – Rafael disse. Como sempre estava debochando do melhor amigo de Graziela, que deu um passo adiante e se preparou para tirar satisfações daquele guri abusado.
- Gente, gente. Vamos nos acalmar. – disse Fernando apaziguador. – Estamos aqui por causa da Grazi. Não é hora de bobagens. E tu, Rafael: deixa o Augusto em paz, pelo menos hoje.
- Ok, papai. – Rafael falou ainda mais debochado. – E desculpa ai Augusto. Mas se a Grazi estivesse aqui ela riria também. Afinal não era isso que ela queria? Que seu enterro fosse uma piada? – Ele finalizou entre sarcástico e magoado. Todos baixaram os olhos.
Rafael era o mais novo do grupo, tinha 22 anos, e todos sabiam que ele tinha se livrado de um sério problema por causa da ajuda que Grazi, que fora sua professora alguns anos antes. Eles sabiam que ele a via como sua segunda mãe. No entanto, nunca souberam no que ela o havia ajudado.
- Vamos entrar, gente. – Alexandra, Alex para o grupo, falou. – Está na hora de acabar com isso de uma vez. Ela não gostaria que perdêssemos muito tempo chorando as pitangas. – sim ela falava esquisito, era muito franca, prática e corajosa, talvez fruto da sua profissão: era enfermeira. No entanto, nos últimos dias não vinha se sentindo assim muito audaz. Já tinha decidido, após o funeral iria tirar umas férias longe de Rio Grande.
Infelizmente, algo a impediria de concretizar seus planos.
O velório ocorreu como Graziela havia determinado. Após as duas horas determinadas, Carlos se preparou para recolheu o caixão, e levar os restos mortais para o crematório.
Inexplicavelmente apenas os membros do grupo haviam comparecido ao velório, embora todos soubessem que a falecida era uma professora muito estimada nas comunidades em que lecionava, o que era confirmado pelas várias coroas de flores que estavam no local.
Augusto perguntou a Carlos se ele sabia algo sobre a ausência dos demais colegas de trabalho e alunos de Graziela. Recebeu como resposta: ela disse que somente eles, os membros do grupo, deveriam estar presentes na funerária. Todos na escola haviam sido orientados a não comparecerem, pois isso não beneficiaria ninguém.
- Mas porque ela planejou seu velório desta forma e com tanta antecedência, Carlos?
- Isso ela pediu para que eu explicasse para vocês depois que fosse cremada, o que ela pretendia que ocorresse quando morresse de morte natural. Infelizmente, seu homicídio apressou as coisas. Mas tudo a seu tempo, Augusto, tudo a seu tempo. Agora preciso ir. E vocês também. – Carlos deu-lhe as costas e foi tratar da última e estranha vontade de Graziela.
Todos se dirigiram para a saída. Rafael estava mais deprimido e sarcástico do que quando havia discutido com Augusto. Os demais estavam pesarosos, contudo parecia que alguns se sentiam estranhamente aliviados.
Embora não tivessem tratado diretamente do assunto, durante o velório, combinaram de se encontrar na casa de Fernando, as 20h, para falarem sobre seus assuntos particulares. Após as despedidas de praxe, cada um rumou para um canto da cidade. Precisavam ler suas cartas antes de se reverem para buscarem uma forma de se livrarem do não poderia ser discutido e para achar uma solução para o pequeno problema que estava enfrentando.
As 19h30 quase todos os já estavam reunidos na casa de Fernando, pois as cartas foram mais estranhas do que se poderia esperar. Só faltava Carlos, que ainda não dera sinal de vida, talvez estivesse terminando de por em prática os esquisitos planos funerários de Graziela.
A conversa era entrecortada por momentos de silêncio e algumas breves conjecturas do que poderia estar ocorrendo. No entanto, ninguém se atrevia a começar a falar abertamente sobre o assunto. A demora de Carlos servia, ao mesmo tempo, de empecilho e de desculpa para que eles não atacassem diretamente o problema.
Por fim, o exótico relógio de carrilhão de Fernando tocou as 20h. E nada de Carlos chegar. Esperaram mais 20 minutos comendo uns petiscos que o dono da casa havia providenciado. Mas o amigo não apareceu. Estavam todos calados e temerosos. Augusto tentou o celular do agente funerário, mas só caía na caixa postal. O silêncio recaiu sobre todos, pois já estavam imaginando o que ocorrera. Ninguém se olhava.
TRRRRRRRRRRIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMM
Todos saltaram em suas poltronas. A campainha havia sido tocada. Eles soltaram um suspiro de alívio e se levantaram para dar as boas vindas Carlos e lhe xingarem pelo atraso, o que, de certa forma, sempre fora o seu costume. Agora lembravam.
Mas quando Fernando voltou da porta, estava pálido. Carregava algo na mão, mas não conseguia dizer nada. Os amigos o olharam preocupados.
- Cara o que houve? Que cara é essa? – Rafael perguntou sem deboche desta vez.
Fernando sentou-se na poltrona mais próxima ainda sem nada falar. Depositou uma pequena caixa na mesa de centro e jogou sobre ela uma folha onde se percebiam letras coloridas, recortadas e coladas no papel. Ele simplesmente apontou pra caixa e disse:
- Leiam o papel, depois olhem aquilo. – e silenciou completamente.
Mas como de praxe, as pessoas nunca fazem o que lhes é dito. Augusto o retirou a tampa da caixa e jogou a mesma longe, movimento acompanhado pelos demais. Quando eles voltaram a olhar o objeto sobre a mesa todos viram o que estava dentro: um olho verde.
Estava depositado cuidadosamente sobre um pedaço de algodão. Nenhum dano ao globo ocular. Via-se um pedaço dos nervos óticos que ligavam o globo ocular ao centro nervoso da pessoa que tivera tal órgão extirpado. Quem fosse especialista notaria que os mesmos foram cortados precisamente, como um bom cirurgião faria. Algumas letras foram dispostas delicadamente em torno do olho, formando a frase:
“Pertence a Carlos”.
Rafael se recostou na parede e soltou uma risada nervosa. Augusto correu para um canto e vomitou. Ester ficou parada no mesmo lugar, encarando aquele olho, perplexa. Alex saiu a cata da tampa para cobrir aquela aberração, os outros cinco membros do grupo simplesmente colocaram uma mão sobre as vistas e disseram, em uníssono: “Meu Deus”, enquanto e sentavam lentamente nas poltronas em que estavam antes.
Alex voltou correndo com a tampa e cobriu o olho frio, falando:
- Calma, gente, é apenas um olho. – para ela era fácil ver assim, afinal era enfermeira.
- Um olho!? Um olho, Alex!? É o olho do Carlos. Ele pode estar morto agora, por causa disso! – Exclamou Paulo.
- Dificilmente ele morreria por causa disso, Paulo. Claro se houver uma infecção... – Alex falou profissionalmente. Mas percebeu que não estava ajudando. – Não vamos nos precipitar. Quis apenas dizer que é possível extirpar um olho e a pessoa não morrer. É por isso que devemos torcer para que ele ainda esteja vivo. Afinal, esse olho pode nem ser dele.
Paulo se sentou ainda mais indignado, mas resolveu se calar. Alex não iria ouvir nada além de argumentos médicos. Foi quando Fernando abriu a boca e disse:
- Eu falei para lerem a carta antes de verem a caixa, eu falei. Mas ninguém me escuta. – tomou um gole de água. Sua garganta estava extremamente seca. – Vou ler para vocês então. Diz assim:
“Esse é um pequeno incentivo para que vocês comecem a tratar nosso assunto com mais interesse e respeito.
Seu amigo Carlos está comigo. Certamente foi um pouco doloroso para ele ter que me entregar de boa vontade seu belo olho. Mas ele viverá.
Isto é, se vocês começarem a decifrar as minhas pistas com mais rapidez.
Não é mais tempo de guardarem segredos. Portanto, tratem de ler suas cartas agora.
Vocês têm apenas 120 minutos, a contar das 20h, para descobrirem a pista que lhes entreguei, ou então, mais um funeral terão para acompanhar
Uma dica, pois sou pródigo com quem tem pouca inteligência: duas apenas são as mais preciosas. Como um par de olhos”.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo, dizendo que não tinham nenhum segredo para revelar, querendo chamar a polícia, outros quietos matutavam que não iriam fazer nada. Se Carlos tivesse que morrer, que morresse, amanhã iriam embora de Rio Grande com certeza.
Mas Fernando interrompeu a todos e disse:
- Eu não terminei. – todos fizeram silêncio. O que ainda faltaria? – Nosso amigo, encerra dizendo que não adianta planejar fugir, chamar a polícia, pois ele tem um segredo de cada um. Ele sabe que cada um de nós praticou um crime e mesmo que escape dele, não vai escapar das autoridades. Eu não sei quanto a vocês, mas eu não quero ninguém bisbilhotando minha vida. Então, ou vocês mostram suas cartas ou eu arranco elas de vocês.
Não se sabe se foi a atitude inesperada de Fernando, geralmente tão calmo, ou o medo de que os outros descobrissem seus segredos, mas o fato é que todos enfiaram suas mão em bolsas, bolsos ou carteiras e jogaram as cartas que haviam recebido sobre a mesa de centro.
- Alex, retira essa caixa horrível daqui. – Fernando comandou. – Vamos usar essa mesa para tentar entender o que esse desgraçado quer e descobrir a maldita pista antes que seja tarde.
A caixa, com o olho verde, foi parar na geladeira do anfitrião.
As cartas foram finalmente abertas e espalhadas sobre a mesa, mas, para o desencanto de Fernando elas estavam em branco, exceto a sua.
- Vocês estão brincando comigo? – ele gritou. – O cara não falou que não podemos esconder mais nada uns dos outros? Cadê o restante das cartas de vocês?
A gritaria recomeçou, uns diziam que só tinham recebido aquilo, outros diziam que ninguém ia ver a sua parte escrita da carta, que não era somente Fernando que tinha direito de ter sua vida protegida.
Foi quando Rafael gritou:
- Calem a boca! Não importam os segredos, pelo menos por enquanto. Importa a pista. Temos que achar a pista senão o Carlos vai morrer! Ou vocês não se importam com isso?
E o relógio bateu as 20h30 minutos, levando todos a pararem para pensar no que Rafael havia dito. Ele tinha razão.
- Então? O que vai ser? – Ele perguntou.
Todos admitiram que a parte escrita havia sido sonegada dos outros. Contudo, juraram sobre os cadáveres de seus pais que a folha separada estava em branco, menos a de Fernando, que continha uma estrofe que não fazia sentido.
Ele mesmo chamou atenção para esse fato e leu o que dizia:
“Quem diria?
As Graças nem sempre
Espalham bênçãos e alegrias.
Seria falta de zelo?
Ela foi tarde.
Ainda era aquela que bendizia?”
- O que isso quer dizer? – Fernando questionou passando a folha para os demais, para que eles a analisassem e dessem suas opiniões.
Entretanto, os nervos a flor da pele, a adrenalina pela rápida passagem do tempo, o medo, as animosidades que estavam surgindo, tudo isso começou a atrapalhar o raciocínio daqueles que antes faziam parte de um clube que visava justamente desvendar esse tipo de coisa. Ninguém conseguia atinar com o significado do que estava escrito.
Fernando olhou ansioso para o relógio. 20h45. O tempo estava escoando rapidamente. Eles não iriam conseguir solucionar o enigma a tempo se continuassem se revezando em olhar para o papel original. Então, ele decidiu:
- Peguem essas folhas. Rafael vai ditar o que está escrito na carta. Assim todos podem ler o que me foi endereçado. Quem tiver alguma ideia passa para os demais.
O ditado foi realizado e cada um começou a tentar decifrar a estrofe, enquanto Rafael ficou olhando a carta original. Ele percebeu que havia algo estranho nela, mas não conseguia perceber o que era.
Os demais trocavam opiniões entre si. Achavam que a referências as Graças poderia se tratar de algo mitológico, outros diziam que era impossível entender a mensagem, o que gerou novas discussões que levaram a perda de minutos preciosos.
Até que Rafael disse:
- Já sei! Descobri do que se trata.
Todos voltaram seus rostos para o jovem, esperando que ele revelasse o que descobrira.
[continua]

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