MRS.A. FRAGMENTOS DE UMA PESSOA









*Imagem obtidagratuitamente no Google Imagens

MRS. A.

FRAGMENTOS DE UMA PERSONA

Contos

Parte I

Mrs. A.: Reflexões

Parte II

O Mirabolante Mundo de Mrs. A.

Fragmento Final:

Álbum de Fotografia






"Em cada um de nós há um segredo, uma paisagem interior com planícies invioláveis, vales de silêncio e paraísos secretos. "

(Saint-Exupéry)



PARTE I

MRS. A.: REFLEXÕES

Fragmento I: Carta ao Sr. Cavalo

Sr. Cavalo, sr. Cavalo, o que tu fazes atrás deste cercado de arame farpado? Tens uma pata meio machucada, uma cara deslavada de quem muito já viveu, sofreu ou aprontou.

Sr. Cavalo, sr. Cavalo como podes aceitar  continuar preso nesse cercado? Poderias ter sido um alazão, ou, ao menos, um cavalo de sela e não esse triste bicho que pasta esse capim comido pela secura deste verão estranho no extremo sul do país. Mas é claro que eu bem sei que não lhe deram outra opção. Contudo, o senhor poderia ter sido mais experto e não se acomodado a essa vida e ter metido as patas na estrada.

Ah! Sr. Cavalo... Eu até poderia me compadecer mais do senhor, tentar curar a pequena ferida que vejo em sua pata, continuar a afagar teu pescoço que, apesar de ser de um quadrupede meio embrutecido, tem uma pelagem bem suave. E o senhor poderia deixar que eu continuasse a falar contido, te dar umas relvas colhidas aqui mesmo para comeres e eu seria bem feliz assim.

Mas sabe o que é sr. Cavalo? Eu hoje vi uma menina de olhos claros, sorrindo lágrimas, e eu podia ver seu peito cortado a golpes de podão, de onde escorria um sangue vermelho de dor, enquanto ela carregava seu coração arrancado estupidamente em suas pequenas e delicadas mãos. E ela não pedia nada, nada, apenas alguns minutos de atenção, alguns segundos para que alguém ouvisse seu sorriso de lágrimas e quem sabe lhe concedesse alguns míseros momentos de empatia.

Então sr. Cavalo, por mais que sua pata ferida seja digna de cuidados, eu goste de conversar com o senhor e coisa e tal, ame cavalos de raça ou matungos maltratados e blá, blá, blá...Ah! sr. Cavalo eu não posso ver um coração de menina assim exposto, assim arrancado. Eu não sou capaz de dizer: “Quanto mais eu observo o ser humano mais eu gosto do meu cachorro”.

Mas não se preocupe: eu ainda vou voltar para visitar o senhor. Trocaremos uns relinchos prazenteiros, eu olharei teu ferimento, alisarei teu suave pescoço, olharei teus olhos meigos, solitários e zombeteiros. Apenas peço que entendas: eu ainda prefiro chorar por uma menina com o peito ferido e lhe estender a mão, colher seus sorrisos de lágrimas e tentar segurar, com delicadeza, seu coração machucado quando ela não o puder carregar. Eu ainda prefiro seres humanos, mesmo quando digo que não.

Com carinho, sua amiga

 Mrs. A.


Fragmento II: “Démodé”

“Démodé”. Ela pensava nesta palavra já há dias. Sabia exatamente o que significava e, embora tivesse certeza que lhe tinham dirigido tal termo de forma depreciativa, não poderia mais tentar mudar a alcunha que lhe fora atirada ao rosto de forma tão desproposital quanto intencional, grudando em sua pele. Era como a viam. E ponto.

No entanto, ela compreendia. Sempre se sentira como uma mulher do século XIX, vivendo no XXI. Naturalmente, não abriria mão da tecnologia (talvez nem soubesse como viver sem ela, se voltasse no tempo), do notebook, do celular, dos dvd’s, cd’s e outras coisas modernas que gostava de possuir e usufruir na era em que existia. E da independência, principalmente da independência, tão duramente conquistada, embora algumas vezes tentassem lhe surrupiar a mesma.

Acreditava, todavia, que mesmo no século XIX, acabaria obtendo essa condição, nem que tivesse que fazer uma revolução, porque esta era intrinsecamente ligada a sua personalidade e não aos tempos contemporâneos em que nascera. Ah! Mas esse saudosismo de uma época que não pudera presenciar! Realmente, talvez, por isso, seu jeito soasse estranho, dissonante para os seres em redor. Não, não cria que vivera vidas passadas. Acreditava era na sua inusitada criação, que lhe dera esse gosto pelas coisas passadas, essa melancolia por aquilo que não vira, mas gostaria de ter experimentado.

A explicação talvez estivesse nas suas origens. Era uma mistura de três etnias: açoriana, castelhana e bugre. Preponderava, entrementes, seu sangue açoriano, pois nascera numa terra que fora colonizada por estes ilhéus que, dizem os textos históricos e psicológicos, são muito dados a melancolia e saudosismo dos tempos idos, assim como de sua velha ilha, quando já não mais residem lá. Alguns de seus descendentes, mesmo sem nunca terem posto os pés naquele lugar longínquo sentem idêntica nostalgia. Por isso, chamava a península em que vivia de Ilha Açoriana, embora seu real nome fosse Rio Grande (a cidade, e não o Estado, porque havia sempre quem se confundia, até mesmo na terra gaúcha).

Além do fervor do sangue, calaram fundo em seu pensamento todos os livros, filmes, músicas e demais temas históricos que lera sobre o informado século. Sempre fora ávida leitora, desde que se conhecera por gente. Havia puxado este gosto excêntrico de seu falecido pai, que não falava muito. No entanto, este também achava esquisito o anseio devotado, descomedido até, de sua terceira filha pelas letras. Ele a achava meio estranha (talvez meio torta), desatualizada? Ela não saberia responder. Grande parte do pensamento e sentir de seu pai era extravagante a ela também, embora entre ambos houvessem mais semelhanças do que imaginara antes.

Suspirou e levantou-se da poltrona em que estava tranquila e deliciosamente acomodada. Ah! Aquele jeito de sentar, de postar as mãos no braço da poltrona, no colo ou segurando o queixo, tudo, tudo parecia ter saído de um retrato pintado nos tempos passados. E ela se sentia feliz em ser assim, calidamente desatualizada, detentora de um modo de ser totalmente diferenciado, com sua postura ereta, sua roupa praticamente impecável, a pele branca, que ela procurava proteger do sol para não bronzear, embora nem sempre conseguisse evitar de todo adquirir um pouco de cor. 

Este fato realmente lhe deixava frustrada, pois depois do verão surgiriam alguns sinalzinhos que maculariam a alvura da sua epiderme. Ela residia na parte do país cujo clima era considerado subtropical, contudo, em algumas épocas, fazia um calor quase equatorial. Não havia como fugir de todo dos efeitos solares sobre sua tez, de forma que, se não lhe era possível lutar e derrotar completamente o inimigo, ela ao menos se resignava em esperar o tempo passar para que voltasse a ser o que era: alva, mas sem ser doentiamente pálida.

Mas, como anteriormente dito, ela levantou-se da poltrona em que estivera meditando na tal palavra francesa. “‘Démodé’. Mas o que era isso, afinal, pois se muitas coisas que há tempos haviam sido esquecidas pelas pessoas estavam ressurgindo – vestes de outros tempos, músicas da década de 80, o extinto LP, movimentos artísticos, políticos, culturais e as pessoas os estavam copiando, embora acreditassem que estavam criavam novos estilos, novas formas de ver o mundo – porque somente ela haveria de ser ‘démodé?’”, refletiu enquanto encostava-se a janela para observar um mundo que mudava a toda hora, sem nada modificar. “Quimeras...”. Suspirou, naquele seu jeito fora de moda, silentemente, sorrindo e passando com os dedos uma mexa dos seus cabelos lisos por traz da orelha.

“Como eu queria dançar um Chamamé, ou, melhor, para ser ainda mais ‘démodé’, quem sabe uma valsa?”. Riu de seu pensar obstinado em relação ao tema. Teria se ofendido tanto assim?

Depois ficou séria. Faltava-lhe o par perfeito. Ela nunca o tivera, talvez nem viesse a ter. As danças de que mais gostava exigiam sempre um par, que dançasse bem, quase alasse durante a melodia, como ela aprendera a fazer, desta feita com sua mãe. Nenhuma “marca”, como se dizia no seu rincão, poderia dançar sem esse par onírico. Até nisto era desatualizada, gostava muito dos termos gaudérios do seu Estado, embora não os usasse muito para não parecer ridícula para alguns. Encolheu os ombros, indiferente.

E então, assim era sua pacata vida. Talvez desatualizada, com uma mistura de silêncios e melodias, de solidão e companhias, queridas ou não. Haveria de ser sempre vista assim, “démodé”. Com gostos quem sabe estranhos ou inusitados, que a algumas pessoas atrairiam ou afastariam. Já tinha se acostumado ao fato.

Portanto, continuaria a observar a vida passar tranquilamente pela sua janela, sonhando com tempos idos, usufruindo os atrativos do presente e ansiando ternamente o futuro idílico com que sonhava, mas que não sabia se haveria de se concretizar. Nada mais da vida pedia, além de saber candidamente esperar.



Fragmento III: Dupla Personalidade

Eu poderia passar a acreditar que tenho dupla personalidade. E ai quando eu fizesse alguma idiotice, ou falasse algo doloroso, eu culparia a outra entidade que existiria em meu interior. Afinal, se para outros deu certo, porque não funcionaria para mim?

Essa criação comportaria toda a raiva, toda a frustração, aberração e até as boas emoções e ações que me desatinam e me levam a sair por aí doando tudo o que tenho. Ela seria o bode expiatório de bons ou maus atos. Das palavras maldosas ou ternas demais que eu usasse. Tudo, tudo seria culpa dela.

Enquanto isto, eu andaria pela cidade, quieta ou falante, soturna ou sorridente. Sempre plácida, serena, responsável. Dotada de bom senso, de uma energia agradável que acalmasse ou alegrasse na medida certa quem comigo estivesse. Eu seria a pessoa ideal para papos-cabeça ou descontraídos. Também seria a boa profissional que nunca falharia com seus clientes.

Quando algo desse errado e surgisse algum murmúrio de insatisfação, eu então simplesmente diria: "Não fui eu, não. Foi minha irmã gêmea! Não se sabe se ela é do bem ou do mal. A culpada é ela, a ‘outra’". Eu falaria com meu olhar mais inocente, com minha voz mais estupidificada e suave possível, em tom baixo e confidencial. Com ar de conspiração.

E todos me olhariam de forma assim, meio suspeitosa, sem saber se seria verdade ou não, se quem falava era eu ou a ‘outra’, sem saber se eu havia enlouquecido ou não. E restariam quietos, a refletir: "Será? Enfim, sempre há margem para dúvidas e já se ouviu falarem em casos parecidos".

E aí eu poderia descansar no final. Não precisaria explicar mais nada. Ninguém perguntaria coisa alguma, pois raramente alguém ousa questionar a loucura.



Fragmento V: Lesmear

Como uma lesma, a surfar pela parede, ela ai aos poucos lesmeando o tempo. Não sabia dizer com exatidão quando desenvolvera esse hábito. Simplesmente, num dia escuro-claro, percebeu que estava assim, desse jeito, meio parada, meio andando, deixando uma gosma por onde passava, único rastro de que ali estivera.

Desejou ardentemente que tudo não passasse de um insólito sonho. Contudo, enquanto olhava para seu tronco, suas mãos, suas pernas, percebia que seu ser estava andando e parando ao mesmo tempo, assim como que lesmeando as horas, notando o tempo urgente correndo, enquanto ela ficava no mesmo lugar.

Percebeu, também, que isso ocorria com mais frequência quando tinha que se concentrar em algo importante: no trabalho, na rotina da vida diária, no convívio com os demais seres do planeta em que vivia. Nestas horas era que mais ansiava voltar a ser a formiga que conhecera outrora. Entrementes, o corpo lesma não obedecia.

O cérebro, naturalmente, não se conformava com o ser lesmante em que estava anexado. Revoltava-se com aquela lentidão, com aquele vagar que acometia o corpo que o transportava. Mas, como nada podia fazer, calava sua revolta e deixava que a lesma prosseguisse no seu lento andar.

E ela ia assim pela vida: a lesmear. O coração quase parado, o corpo amofinado por angústias mil, as esperanças desiludidas, a saudade reprimida... Lesmeava e nada mais.

No entanto, apesar desse estado quase imutável, seu pensamento esquisito viajava anos luz e tentava inventar a fórmula exata para realizar o primeiro transplante de cérebro noticiado. Talvez assim pudesse encontrar um corpo que não estivesse acometido pelo mau hábito de lesmear a vida.


Fragmento VI: Cotidiano

Hoje estou no restaurante de praxe, observando nada e tudo, todos e ninguém. Estou entediada, saturada, cansada de tantos planos e de não poder alcançá-los.

Pelo menos não vou ter que aturar, por enquanto, o casal de namorados já um tanto amadurecidos, que também almoçam todo dia aqui, de mãos dadas sobre a mesa, como para deixar os solitários com inveja ou com vergonha, como se esses tivessem algum problema que os impedisse de ter a mesma exaltada felicidade. Chega a dar nojo, parecem um casal de adolescentes.

Da mesa que partilham parece escorrer mel, sonhos, promessas e outras coisas que não é preciso mencionar. Que pelo menos sejam felizes, enquanto a fase idílica durar. Depois virá o dia a dia, as cobranças, as dúvidas e incompreensões. Será que irão resistir ou superá-las? Em meu ceticismo: não sei, não.

Ah! Que se danem! Nem me importo. Só me importo com a comida a minha frente, a longa tarde de trabalho que ainda terei, esse tédio e cansaço que me consome, a repetição desses mesmos hábitos: todo dia, todo santo dia...

Eu sempre vou ao mesmo restaurante, até porque a comida é boa e tem esse cheirinho de café feito na hora, que meio que me embriaga e trás uma sensação de coisa conhecida. Chega a ser um consolo receber esse café. Um toque diferente na minha rotina fria.

Daqui a pouco estarei levantando para ir embora. O ombro doendo com a velha tendinite. Mesmo assim insisto em continuar escrevendo a mão. De qualquer forma o PC acaba só piorando a dor. Voltarei para o trabalho, passarei a tarde maçante, retornarei para casa, sentarei na frente do computador, da televisão, lerei um livro ou verei um filme da minha coleção. Sei lá! Será como ontem e antes de ontem e antes de antes de antes.

Depois dormirei. Acordarei às 7h, como sempre, tomarei banho, me vestirei, fingirei olhar no espelho para verificar se a roupa escolhida estará em conformidade com o estilo do escritório e rumarei para o trabalho. Será um novo dia, ensolarado ou nublado, e repetirei todos os passos de hoje. Assim seguirei vivendo esse cotidiano baço.

Até quando?

Até quando?

Até quando?


Fragmento VII: Mendigos

Nada mais será narrado. O ponto já foi pingado no final da frase. Não cabem mais dúvidas diante de uma situação que, aparentemente, já foi decidida.

E o sol brilha lá fora, mostrando que o tempo se esvai, embora possa parecer que transcorre lentamente. As formigas continuam a percorrer suas trilhas, carregando suas folhas, sementes e demais víveres, numa correria incessante; tão preocupadas com suas tarefas que não questionam nunca a repetição incansável da mesma labuta.

A mesma ladainha de sempre se espalha ao redor: os mesmos sussurros, os mesmos berros, as mesmas pessoas impacientes ou pacientes, educadas ou não, com suas risadas alegres reverberando felicidade ou tristeza. No mais das vezes, quem sabe, esta última, embora nem todos percebam ou queiram admitir.

E se junta a tudo isso, o vento zunindo com aquele gosto de inverno, de folhas secas, areia entrando nos olhos e poças de chuva sangrando no chão. Talvez por isso surja a pergunta num canto do papel: será sensato jogar tudo ao léu apenas para caçar um sonho? E será mesmo sonho, ou apenas teimosia: dura, fria, invejosa?

Os mendigos, apesar de tudo, ainda dormem na praça, seja porque não há lugares no albergue, seja porque não querem ir para lá. “É um lugar quente, mas tão frio, tão frio, que a gente sente que vai ficar louco, moça. A menos que se beba um trago de cachaça. Mas lá não deixam a gente dar um talagaço no gargalo. E ainda querem que a gente tome banho, senão não pode ficar.”

Suspiros desalentados.

Enquanto isso, alguém sentado num banco qualquer da Praça Tamandaré recebe o sol morno no rosto e aconchega mais o casaco ao corpo meio gelado, como se o calor do pano pudesse penetrar sua alma e atingir seu cérebro entorpecido, amaciar o órgão gládio, que está batendo com um compasso a menos desde que previra o desfecho de tudo.

O sol não lhe adentra, contudo. As ladainhas já não a incomodam há tempos, não lhe importam as formigas ou suas trilhas corriqueiras. O vento sacode os seus cabelos; não lhe agita e nem lhe paralisa. Não vê os mendigos e suas agruras.

Esse alguém está dura, fria, transida, liquefeita. Seu ser escorregou há muito para um lugar que não é de luz, mas também não é de escuridão. Pode ser cinza, descolorado, lusco-fusco, de qualquer tom entre a sombra e a claridade.

Entretanto, ela não se preocupa com este pormenor. Os livros já a aborrecem, suas músicas não lhe trazem emoção, a companhia de outros não lhe desagrada, no entanto, do mesmo modo não a atrai. Não está triste e nem alegre.

Este alguém sentada no banco da praça apenas se questiona: “Será que as pessoas, algum dia, conseguirão entender porque, às vezes, se deve matar o próprio coração?”


Fragmento IX: Amplexo

Eu estou vivendo o amplexo reflexo da dor.

E essa chuva que começou a cair hoje e não quer parar de respingar essa tristeza no chão.

Por isso, embora eu quisesse conversar com o espelho neste domingo, ele está amuado e eu não consigo fazê-lo me atender, mesmo batendo com os três toques mágicos costumeiros no vidro refletor.

Eu estou, portanto, vivendo no reflexo amplexo da dor.

Amanhã tenho que trabalhar, apesar deste calor infernal, mas eu não gosto de praia mesmo, nem de areia. Mas preciso ir trabalhar, mesmo sem nenhuma vontade. Aliás, há tempos que ando querendo que alguém diga: “Não, não vai trabalhar. Não precisa. Fica ai, nesta casa tua e não tua. Descansa. Fica aí durante um ano ou dois, somente lendo, estudando, escrevendo, falando com outras pessoas ou com o espelho mesmo. Não precisa trabalhar, não. Só faz ser feliz por um tempo”.

Mas não vou ouvir isso nem hoje, nem amanhã, nem depois, assim como não ouvi no ano passado nem no ano antes do ano passado, apesar de ter dado indicações. Assim, terei que me conformar.

Já ri tudo o que podia hoje, entretanto, de nada adiantou. Agora, estou aqui: sentada languidamente, cansada de tanto gargalhar (ou seria grasnar?), esgotada antecipadamente por todos os volumes que amanhã terei que ler, reler e complementar.

Estou só, cansada, lânguida. Afinal, há um bom tempo não fazia tanto calor mormacento nesta cidade.

Desta feita, não adianta, apesar de tudo e por tudo e sempre em tudo, sou o amplexo reflexo da dor. Preciso somente me resignar.


Fragmento XI: Ancião

Quando o Silêncio bate a minha porta, com ele não ouso sequer tergiversar: deixo-o entrar, pois talvez seja a hora dobre de sufocar ilusões.

Então, sento-me no chão, aos pés deste ancião, que me vai falando, aconselhando, argumentando. Resto ali, com os braços envolvendo minhas pernas, ouvindo placidamente o que ele me vai contar. E tento aprender. E tento reter aquilo que nem meu pai soube me dizer.

Réstia de pó lançada ao soalho, olhos vazios que veem o nada, e ele murmurando, murmurando. Eu somente fico escutando o Silêncio. Não respiro, não vivo, não choro. Tento entender, mas até a racionalidade de mim teima em fugir ante a aparição deste doloroso amigo do tempo. Recosto minha cabeça nos braços, sinto a canseira que me invade, enquanto o meu velho mestre tenta me convencer que suas palavras são a verdade.

Por fim, ele se vai, deixando a porta entreaberta para que eu possa vê-lo distanciar-se; para lembrar-me sempre de qual a razão de sua visita, de seus conselhos, de sua infinita feroz docilidade.

Sabe ele que seu efeito perdurará em mim até o fim da tarde e início de outra manhã esperançosamente desesperançada. Nesta hora vestirei minha fantasia mais bonita, aporei na face minha máscara craquelada e seguirei pela estrada a sorrir para todos que por mim passarem.

Mas no estúpido espelho de minha sala de trabalho eu fitarei os olhos veros que me pertencem: vazios, tristes, insones, perdidos na desilusão do terrificante Silêncio, meu patrão, que sussurrou verdades ao meu ouvido, mas sem dó nem piedade do meu torto coração partido.


Fragmento XIII: Circo

E tinha esta ânsia desmedida, mal entendida e mal versada. Este desejo inconsequente, irrequieto e despojado. Tinha este sonho tão intenso, tão ardente, tão sufocante que, no mais das vezes, nem falava.

Então virava equilibrista, procurando manter os pés firmes no fino fio esticado. Virava trapezista que voava, mesmo estando parada e sem rede de amparo. Tornava-se malabarista sem coordenação motora, mas que insistia em tentar agarrar o malabar que já despencara no picadeiro.

Ainda era aproveitada como contorcionista, que vivia a dor diária de torcer de todas as formas inimagináveis o próprio corpo, para escapulir aos desastres, aos perigos e até as alegrias que, porventura, aparecessem.

Quando sobrava algum tempo, transformava-se na domadora de feras para cabrestear aqueles sonhos que não iriam se realizar. E, por fim, virava a aberração do circo dos horrores, que todos os visitantes desprezavam, chutavam, riam e tinham medo, embora a curiosidade mórbida do populacho criasse um fascínio que, de se afastarem do ser torto, os impedia.

E para todo esse elenco circense completar ainda se fazia poeta para tudo isso declarar. Alguns lhe diziam que já nascera pronta para praticar essa arte e mais nada precisaria fazer. Então agradecia o elogio, mas dizia que era ainda apenas aprendiz, eis que um ser completo nunca seria.

E era por isso que tinha essa sede, esse desejo, esse ardor, que não gritava, não chorava, não falava, nem arrostava.

Tinha sede de vida e de possui-la por inteiro. Era por esta que rugia, que desesperava, em total silêncio.


Fragmento XIV: Caminho dos Elefantes

Eu percorri o caminho dos elefantes e vi o quanto era velha, mesmo que meus olhos parecessem juvenis. Percebi o quanto meus pensamentos eram estranhos; quantas alegrias e dores existiam em minha estrada e eu não as sabia declarar.

No exílio desta jornada a solidão presente não me abateu, mas meus pares tornaram minha caminhada mística e não suportaram a realidade de que assim era preciso fazer. Tentaram convencer-me de que eu não poderia sobreviver sem ninguém.

 Eu percorri o caminho dos elefantes e mais distante ainda fui voar. Embora os olhos do mundo presenciassem meu ser, eles não alcançaram algo que não podiam fixar. E meu corcel fez-se Pégaso e tornou-se intocável em sua veloz cavalgada através das ventanias.

Os elefantes junto a mim me fizeram companhia; seus olhos imperturbáveis serenavam minhas emoções naufragadas. Percorri este caminho, buscando algo que não sabia se veria, contudo, senti que a jornada não era tardia e algo dela iria resultar. Procurei ao longo do caminho o que estava perdido, mas eu conseguia entrever a minha frente.

Eu viajei pelo caminho dos elefantes, solitária, sem abrigo, fustigada por ventos e inundações, vestindo andrajos, embora minhas vestes refulgissem. A poeira entrava em meus olhos secos, a boca ardia com a sede causada pelo calor abrasador, o corpo doía por tão longa e exaustiva viagem, a mente estava presente, o corpo ausente.

A paisagem era inóspita, mas eu ainda caminhava junto com os velhos e novos elefantes que realizavam a mesma árdua jornada, para se lembrarem de quem foram, de quem eram e de quem seriam. O ritual seria sempre o mesmo, embora diverso em todas às vezes. E se repetiria por infindáveis gerações. E eu continuaria com eles até a estrada a frente chegar ao fim.

Sim, eu percorri o caminho dos elefantes. Agora retornarei com a manada pela mesma estrada, comendo poeira novamente, sofrendo as agruras do deserto, recolhendo restos que por ali ficaram ou se perderam. O retorno será tão demorado quanto à ida, o resultado poderá ser diverso ou idêntico ao das outras viagens que já fiz com a mesma velha e nova manada. Mas eu percorri a estrada. Eu andei e vivi com os elefantes. Para alguma coisa deverá servir esta caminhada.



Fragmento XV: Fragmento

Estou sentada, embora em pé. E tenho a minha frente cinco ou seis livros, um caderno de rascunho, lápis, borracha, marcador de textos, um notebook, uma televisão ligada, e um cérebro em pleno funcionamento, que, ao contrário, não possui uma só sensação.

Eu leio Virginia Woolf, mas não seu livro. Eu falo pelo MSN, enquanto ligo parafusos neurocientíficos. E ainda escrevo, mesmo sem parecer que o faço. Falo com quem está ausente, ensurdeço para a música que ressoa no cômodo em que caminho; estou presente na sala, ainda que não me vejam.

Viajo para o outro lado, mas fico no lugar que me ordenam. Fujo para a rua, entrementes esteja presa em uma cela. Falo com a gata deitada no sofá, dormitando tranquilamente, apesar de eu estar em silêncio continuo. Tomo o café que esfria na mesa, mesmo que minha boca esteja vazia.

Eu não respiro mais, apesar dos pulmões inflarem. Meu coração bate, mesmo que esteja parado. Tomo o banho necessário, e ainda assim a sujeira continua aparecendo. E arranho a pele por causa da coceira ocasionada pelos ácaros, embora a mesma não esteja ferida, vermelha ou irritada.

Eu danço com ou sem um par. No entanto, os movimentos não são percebidos. Eu voo pelo ar, contudo, não tenho asas. Estou rodeada por pessoas, apesar de estar comumente sozinha. E para finalizar, eu me afoguei a apenas cinco metros de onde as ondas batem na praia, mesmo sem me encontrar diante do oceano.

Que será isto que vivi, vivo ou continuarei a viver? Não sei, apenas vejo na janela o fragmento de uma paisagem que não existe mais.


Fragmento XVII: Daquilo que nem sei

E esse desassossego me tomou:

Fernando,

Drummond,

Florbela,

Clarice,

Verlaine,

Cecília,

Quintana, nem eles acalmam isso em mim. Entro novamente na livraria. Procuro o barulho confuso de conversas fiadas ou eruditas. E acabo encontrando aquele rosto que não conhecia, mas buscava meus olhos como se houvesse me visto inúmeras vezes, antes desta primeira.

“Tu estás em mim ou eu estou em ti?”

Mas teus olhos tomaram os meus e mesmo ao desviá-los, não pude evitar uma última visão. E foi como se houvéssemos, nesse ínfimo instante, nos reconhecido. Um meio sorriso surgiu. Depois nada mais.

E quis eu revelar. Falei altiva e tristemente: “Eu somente sou feliz com meus livros”, enquanto os seres da livraria ficam a me olhar admirados de tal arroubo. “Será triste, louca ou má?”, senti que eles pensavam sem nada dizer. Voltaram seus rostos para o lado, ergueram suas xícaras e retomaram as conversas que minha frase insólita interrompeu. O barulho retornou a cafeteria e a rotina prosseguiu.

Por fim, eu me sento envergonhada, emudecida, pensando novamente: “Eu somente sou feliz com meus livros. O que mais posso fazer?” E, ao olhar adiante, me vi em pé a um canto, observando a cena por mim levada a efeito, com cara de espanto e incredulidade, desconhecendo-me no espelho que me refletia, eis que nada do que via aconteceu. No entanto, aquela frase vibrava ainda no ar denso e intelectualizado da livraria.

Meu desassossego permaneceu. Eu tentei, mais uma vez, encontrar teus olhos, recapturar aquela sensação tão instigante quanto intrigante. Mas não me fitaste mais, já não estavas mais ali, te afastaras para outras eras nos livros sobre tua mesa.

Fernando,

Drummond,

Florbela,

Clarice,

Verlaine,

Cecília,

Quintana: todos ficam a olhar-me de suas folhas, vendo minha inquietação aumentando. E restaram desalentados, tão tristes, escorrendo das páginas dos livros por mim escolhidos, por nada poderem fazer por mim ou aquela do espelho. No entanto, eles bem sabiam: tal como eu, eram felizes somente com seus livros.


Fragmento XVIII: Chuviscante

"Boa noite", diz a chuva batendo em minha porta. "Deixa-me entrar, imploro, eis que a solidão da rua está a me atormentar."

Mas não sei como responder a esse pedido, pois ele bem pode ser sincero ou fingido. A chuva pode apenas estar querendo molhar minha alma, e não buscando minha companhia, para depois me abandonar toda encharcada, sem possibilidade de me livrar da umidade e enraivecida como sempre me ocorre nestes momentos.

Então, me torno uma espécie de tua voz emitida pela boca de outro, com um idioma estranho, mas compreensível em parte. E sinto esse desejo de sair pelas ruas escuras, desertas e liquefeitas de Rio Grande, mesmo que acabe totalmente afetada por esta chuva estranha.

Sinto um desejo insólito de visitar certos lugares da cidade em dias de chuva triste a despencar do céu. Andar e visitar; visitar e andar. Tocar alguns muros, monumentos, árvores. Deitar num dos bancos de uma das praças da cidade, enquanto o chuvisco vai sendo absorvido pela minha roupa e melando meu cabelo já naturalmente escorrido.

Rio Grande é tão triste quando chove! E eu fico triste junto. Aliás, eu sempre sou deste jeito: meio chuviscante. Assim, nada de esquisito em dizer que a chuva riograndina me entristece, nem em contar que ela pede minha companhia. Afinal, somos duas personagens solitárias numa cidade pequena-grande, velha-nova; mutávelmente imutável.

E eu me transformo na voz desses pingos doentios e reverberantes, pois quando chove aqui os trovões e raios explodem em todas as direções e causam um terror-pânico em mim e nos habitantes da cidade. A energia eletrica, como sempre, sofre uma brusca queda e quase queima todos os eletrodométicos e eletroeletrônicos das casas riograndinas.

Aí fico ansiosa, presa entre quatro paredes como um bicho encurralado; um tanto amedrontada, mas terrivelmente desejosa de sair para a rua, abrir os braços e esperar, esperar que algo ocorra, que algo me atinja e me faça... Desejando ver os raios riscando o cinza-chumbo do céu, de gritar no mesmo diapasão dos trovões e de libertar algo que nem entendo o que é ou porque sinto existir entre eu a chuva que cai de forma estranhamente diferente em Rio Grande.













Fragmento XIX: O Segredo

Ele pesa assim, como um a noite escura a anuviar os olhos. E cobre o ser como uma pele ou fuligem que não sai mesmo com escovadelas firmes de uma escova dura, durante o banho quente que quase arranca a epiderme.

A pessoa caminha durante o dia ensolarado, sorri, conversa com colegas e amigos. Toma um café forte na lanchonete, almoça, trabalha, participa de reuniões onde se torna conhecida por sua sensatez e tino para tomar decisões rápidas, prementes ou corriqueiras.

Mas “ele” está lá! Presente, oculto, placidamente empoleirado sobre um ou ambos os ombros, sussurrando que não se afastará, não libertará aquele que o sustém e mantém em cativeiro. O ser olha para os lados para saber se outros ouviram as frases temerárias ou perceberam seu crime escondido. Alívio por tudo parecer normal, contudo, apenas por breves segundos ou horas.

E durante o dia, o segredo vai se enroscando no pescoço, na cabeça, no tronco e pernas da pessoa que o contém. Vai pressionando como uma jiboia ou uma mola; confinando membros, movimentos e pensamentos do ser que tenta esquecer, fingir que nada está ocorrendo, que tudo já acabou, mas que não logra fugir ao cárcere da prisão do que não pode dizer.

A pobre criatura olha para a pessoa ao lado, aquela que parece que vai entender, suportar, ou, ao menos, ouvir calada o que ocorre no interior do confidente. E chega a dizer o nome do possível ouvinte e começar a frase. Mas a expectativa no rosto do outro lhe acabrunha, envergonha, aflige e, no último e derradeiro segundo, finge esquecer o que iria dizer ou inventa algo diferente. Um século passou para ela, mas seu interlocutor nem percebeu.

Anoitece, o peso nos ombros faz doer a nuca, os braços, o coração. A pessoa retorna para sua casa, lê, assiste TV, joga games, ouve música ou escreve, enquanto a sombra lhe persegue os movimentos, intoxica sua mente.

Resolve dormir. Sonha com campos coloridos ou celas escuras. Por fim, o segredo salta sobre seu corpo e o sufoca até a morte. Sinal de alerta, seu cérebro desperta exausto, assustado: instinto de sobrevivência.

O ser se enrosca em posição fetal e chora silenciosamente, com a cabeça escondida sob o cobertor, para que ninguém o ouça. O lençol restou molhado de sal e suor e os dedos mordidos. Somente a paranoia lhe abrigou.


Fragmento XXII: Fotogenia

E como pode ser que existam essas pessoas, algumas bonitas, outras nem tanto (na opinião prosaica de muitos), mas que, ao posar para uma fotografia, espelham na mesma uma beleza tão vasta, tão intensa, tão extasiante quanto o ser mais belo que já foi visto?

Será o sorriso misterioso? Será a profundidade do olhar? A postura ou o aspecto de intensa meditação? Será a alegria apenas esboçada ou a recôndita melancolia? Será a profundidade dos sentimentos ocultos que, por um milésimo de segundo, vem à tona mesmo contra a vontade da pessoa que é fotografada? Será o conjunto: a pessoa, o ambiente, o clima, enfim, tudo que é abarcado pela película?

Não sei bem explicar ou como responder. Somente sei que algo existe que torna a imagem capturada e seu modelo tão belos que chegam a nos causar duas invejas: uma, um pouco má (tenho que ser sincera nesse momento), eis que nos questionamos “Porque, porque eu não consigo ficar do mesmo jeito nas minhas fotos!”, nos levando a desejar queimar todas as fotografias para as quais já posamos.

A outra inveja é boa, pois passamos a reconhecer a beleza existente naquele ser que vemos diariamente e agora se descortina sob outro prisma diante de nossos olhos. Aí, se ele é nosso amigo, parente ou par romântico, pensamos orgulhosa e egoistamente: “Eu faço parte da vida deste ser, desta criatura maravilhosamente bela, embora outros possam dizer que não”.

Então, ficamos a olhar essa fotografia, em estado de inanimação total ou, ao menos, trocando-a de ângulo para encontrar a explicação para o fenômeno que nos assalta ao observá-la. Mas a lógica não fornece esclarecimento sólido para esse sentimento estranhamente contundente e doce.

Eu o sinto como um susto, uma espécie de descobrimento inusitado, que me espanta, que me imobiliza, mas não me atrofia. E fico apenas mirando o quadrado que tenho nas mãos ou na tela, impressionada com o fato de não ter notado antes o que era tão óbvio: que aquela pessoa bonita, mas comum, ou às vezes nem tão bonita, mas incomum, é detentora de uma fotogenia, de uma característica, de um conjunto de “não sei o que” que a torna diferente das demais, a torna bela somente pelo fato de ser “ela”, de ter uma personalidade única, que, por um acaso, uma fotografia conseguiu captar tão intensa e rapidamente que revelou o segredo de sua alma, anteriormente despercebido ou ignorado por mim, por todos.

É um segredo desvendado a meio, restando toda a outra metade para descobrir se olharmos atentamente para o modelo fotografado, mas ao vivo. Ou não.

Talvez nunca venhamos a descobrir todos os mistérios destes seres fotogênicos. E por isso (acho que essa seja a resposta) a fotografia tenha capturado essa beleza tão impactante, para que passemos a olhar de verdade os seres que nos rodeiam.


Fragmento XIX: Narcolepsia

Ela precisava desesperadamente de uma janela, ou um buraco na parede, por onde pudesse observar um pouco a vida lá fora. Não precisava ser uma janela muito grande ou suntuosa. Poderia ser pequena, tipo 1m x 1m, ou um basculante. Até mesmo um vitrô, que não abrisse totalmente, serviria.

Acreditava que se tivesse esse pedacinho de parede aberta para o lado de fora da casa em que vivia, com certeza, iria sentir-se melhor. Poderia observar um pequeníssimo quadrado de céu azul ou nublado, de sol ou de chuva; sentir um pouco da brisa, tão comum em sua cidade, a roçar, de leve, seu rosto pálido.

Haveria de poder escutar os raros pássaros, que ainda existiam na localidade, cantando; ou aquele grilo, mesmo aquele grilo chato com seu cri cri noturno. Ainda poderia deixar sua gata sair por ali, em vez de ter que abrir-lhe completamente a porta da sua residência, o que lhe causava certo terror-pânico.

E o vão na parede dupla de tijolos ainda lhe daria um ponto de observação, acanhado, mas discreto, em relação aos poucos transeuntes que passavam naquela estreita rua. Assim, ela teria um pouco de agitação em seu insípido cotidiano.

Aí talvez pudesse ver o velhinho que morava ao lado, caminhando seus passinhos lentos de idoso, despreocupado com o tempo que voava, preocupado com o pouco que lhe restava. Ou não; talvez ele já estivesse conformado, afinal tinha mais de oitenta anos e não era nenhum infeliz.

Quem sabe conseguisse ver a felicidade do jovem casal de namorados, que tinha como ponto de encontro a pracinha construída no antigo pátio baldio que havia na esquina e onde ela brincara quando criança. Talvez pudesse observar a jovialidade e o encanto do primeiro amor e lembrar... Não, isso preferia não lembrar, embora ainda desejasse ver o jovem casal.

Através dessa janela, mesmo que quase não abrisse, ela ainda poderia ver o carteiro passando, entregando a correspondência da vizinhança, pois ela bem sabia que seus vizinhos, além das contas, recebiam cartas, cartões, pacotes de presentes, enviados de outros lugares por parentes e amigos próximos ou distantes. E quando o carteiro passasse, embora nada houvesse para si, além de faturas, quem sabe, como os antigos carteiros faziam, ele parasse para trocar breves palavras com ela, a moradora do único casarão velho e sem janelas do quarteirão.

“Se houvesse essa janela...”, sonhava. Ah! Então ela viveria; todos os dias trariam alguma novidade, algum acontecimento para fornecer a sua mente cômicas ou profundas reflexões. E ela voltaria a ser feliz, daquela felicidade pura de criança que sentia quando... Quando o que?

Quando era mais nova? Mas se nem velha era ela. Quando era mais falante? Mas como, se pouco ou nada ela havia falado em toda sua vida, pelo menos, não algo realmente importante ou profundo? Quando as portas do casarão estavam sempre abertas e todos que desejassem podiam adentrar seu lar e dizer se estavam alegres ou tristes, exclamar sua dor ou prazer e até brigar com ela por causa de sua excentricidade? E ela somente sorria dos puxões de orelha que levava, ou ria com quem ria, chorava com quem chorava e acalentava os corações entristecidos ou solitários.

No entanto, agora que as portas estavam fechadas sem que ela soubesse como haviam sido lacradas tão hermeticamente, ela só sonhava com um pequeno quadrado para ver um pedacinho de céu, observar discretamente quem passasse e ouvir um ou outro som que na rua fosse sussurrado.

Ela sonhava, somente sonhava; sem saber se ainda estava acordada ou se estava completamente dominada pela narcolepsia.


Fragmento XXIV: Storyboard

A vida é esquisita. Por vezes parece um estranho grafite ou o esboço de uma história em quadrinhos, do tipo que ele estava acostumado a rascunhar para seus projetos de trabalho, para seus clientes, para passar o tempo ocioso.

Hoje havia acordado com a garganta seca, o corpo moído por uma surra que levara em seus sonhos e pesadelos. Era o anti-herói que tentava escapar da turba ensandecida, após mais um ato de heroísmo fracassado.

Levantou da cama, estropiado, mal comeu e bebeu e já passou a tentar rascunhar alguma coisa do trabalho que tinha para sobreviver. Mas, neste dia, nada estava fluindo como ele queria. E o telefone não parava de tocar... clientes fazendo solicitações, um pedido para que ele analisasse uma logomarca de uma empresa e desse o mais breve possível o esperado retorno, respostas a e-mails, etc., etc., etc. E o storyboard da HQ (que poderia ser da sua vida ou não) lá, em cima da mesa a esperar para ser finalizado.

Depois, mais uma reclamação da sua família e nova justificativa sobre... sobre o que ele nem sabia.. Não sabia mais o que dizer, afinal fora encontrado num momento de ócio, a navegar pela internet, sem saber o que estava procurando, apenas vagava por ali, entediado. Contudo, fora surpreendido e ai...

Era incrível a capacidade que ele tinha de se sentir culpado por tudo, diziam depois de algum tempo, e ainda achavam estranho ver certa vermelhidão em seus olhos, coisa que não durava muito, pois se alguma  água ainda escorria deles era muito pouca e breve. Já não podia dar-se ao luxo de lagrimejar com a mesma frequência de antes. Seus olhos estavam se tornando um deserto. Era preciso, portanto, poupar os poços que ainda existiam para lubrificar os globos oculares. Caso contrário, acreditava, acabaria ficando cego.

E isso lhe despertou a atenção para um objeto pequeno, que estava do outro lado da sala, sobre um móvel qualquer, displicentemente jogado. Precisava encontrar-se com um amigo com urgência. Pedir que se desfizesse daquele objeto, pois não conseguiria jogá-lo fora, não teria coragem, assim como não tivera até agora. E isso lhe doía. Doía por causa das lembranças que evocava. Doía porque teria que se livrar dele e delas, sob pena de morrer de vez.

Por fim, como todas essas coisas lhe pesavam muito e lhe deixavam assim meio imobilizado, resolveu sair para a rua, passear em sua cidade. Pegou sua máquina fotográfica e saiu caminhando pelo dia levemente ensolarado, até que chegou a frente de uma antiga casa.

Era uma de suas preferidas, embora estivesse meio abandonada; paredes sujas, portas e janelas fechadas. Algumas placas de “Vende-se” pregadas no muro encardido. E ele pensou em como era estranho o surgimento de tantas placas de “Vende-se” nos imóveis da cidade, justamente agora que ela voltava a expandir-se.

Pena que ele ainda não podia comprar aquela, ou qualquer das outras casas bonitas e antigas que apreciava tanto...

Então, contentou-se em bater algumas fotos dessa que admirava. Fotografias que captavam os detalhes arquitetônicos dela, a sujeira das paredes, as tristes placas de “Vende-se”, os grafites coloridos e surreais que foram pintados no muro, com ou sem autorização do proprietário. E sentiu-se feliz de poder guardar essas recordações da casa, antes que ela fosse vendida e sua personalidade perdida quando seus novos donos a colonizassem, ou resolvessem destruí-la (e isso lhe doía como se o imóvel fosse sua própria carne) para construir um edifício mais arrojado.

Depois... depois pensou um pouco e resolveu fazer algo diferente. Ajustou o sistema de sua máquina digital para fotografar com efeito de rascunho e tirou, outra vez, fotos da casa e do muro grafitado, com os mesmos ângulos das demais.

Foi quando teve a ideia de escrever estas linhas: um storyboard que esboçava a visão de anti-herói de sua própria vida.


Fragmento XXV: Espelho

Hei, tu ai? É, tu mesma, que estás aí, escondida neste espelho, como se fosses uma Alice qualquer da vida. Quero conversar contigo. Não, não adianta tentar fugir, o papo agora é entre nós duas.

Quantas vezes eu já te falei que não adianta tentares explicar o que ninguém entende nem quer entender? Não adianta virar o rosto para a escuridão. É a mais pura verdade. As pessoas não gostam de explicações, de sugestões, não gostam de saber de seus defeitos, e dos teus muito menos. Elas não querem saber do teu inferno particular, da tua decepção, da tua alegria, da tua excêntrica loucura. Elas só desejam que tu sorria. Sim! É muito simples, simplório até, diria. Se tu sorrir sempre e a toda hora, poderão até dizer que tu és esquisita, mas vão ficar mais felizes e achar que o mundo é perfeito, a vida maravilhosa e que tudo, enfim, vai ficar bem.

Elas não querem ser prevenidas, não querem saber das preocupações que tens com elas, das tuas mazelas, das tuas agruras ou do teu trabalho. Senão, elas começam a te vigiar, achar que estás pra te matar, começam a te mentir sobre dinheiro, tentar te acarinhar e fingir que vão estar lá, naquele lado escuro como breu que, na verdade, não querem conhecer... o outro lado do espelho. Não, elas não querem isso.

Eu já te recordei diversas vezes que existe um lugar certo na ordem natural do universo que tu conheces e que é o que te compete: ficar sempre onde estás, ao alcance da mão de quem precisar e sem reclamar. Aconselhar sensatamente os que te buscam para tal e deixar o rio inquieto da tua vida encontrar-se com o lago tranqüilo que almejam que sejas. Tu já o sabias, tinhas até te conformado, lembra? Mas ousaste sair por aí, dizendo que estarias me acalentando, decidiste rabiscar umas linhas e mostrar para quem quisesse ver. Mas eu te avisei que não ia ocorrer o que esperavas. Que o parco equilíbrio do teu mundo seria abalado, que falarias palavras ao contrário e acabariam dizendo que tua imaginação é por demais imaginativa para se conviver.

Tua teimosia acabou assim: tu tendo que te esconder ai no espelho e eu tendo que explicar que a culpa não era minha, mas da cara “amiga excêntrica” que tenho e ninguém vê. Mas nem isso serviu dessa vez. Foi-se de roldão minha respeitabilidade. Perdi o direito de ter razão, de protestar, de passear. Adeus naturalidade! Adeus, dias de sol! “Adieu, messieurs, adieu, mademoisseles”.

E para piorar acabaste com minhas noites de sono. Estou insone há quase um mês. Grave problema, porque ai fico escrevendo (aliás, tu conduzes minha mão, minha mente, minha intenção) falando de pássaros que partiram, saudades que ficaram, tristezas que sangraram e mancham o branco do papel. O que causa estranheza em alguém que parecia tão predisposta a alegria infantil e a ficar grudada nos amigos (os reais, e que aqui não estão).

Não, não. O pior pecado não é cometer erros, não é repeti-los, pedir perdão por algo que não se fez, nem implorar por amor a quem partiu e te desprezou. O maior erro é ser privada de lucidez. Ninguém gosta de loucura. Alguma excentricidade é possível e até necessária, para divertir os amigos e afins. Mas loucura!

“Jamais, nem pensar! Na minha família não. Imagina. Ela só é um pouco estranha. Fica muito tempo em silêncio ou fala demais, ou lê cinco livros ao mesmo tempo. Ou trabalha, escuta música, joga games no PC e rascunha uma poesia tudo na mesma hora. É cansativo. Mas é somente isso, porque ela é um pouco excêntrica, sabe?”

Loucura é tabu. É medo do Escuro. O outro lado do espelho que ninguém quer ver, entender ou compartilhar. Por mais que expliques, que previnas, que peças perdão, não existe redenção para tal mal. Os ‘sãos’ irão partir se souberem que tu és dada a acessos de devaneio, de ilusão, de criação, ainda mais a altas horas da noite.

Talvez seja por isso que das histórias infantis Alice no País das Maravilhas seja o menos aclamado. Quem vai querer saber de uma menina perdida num mundo estranho, que acaba falando coisas ao contrário, ou crescendo e encolhendo toda hora; conversando com bichos, chapeleiros malucos, ouvindo conselhos de uma lagarta e, para piorar, acaba parando justamente onde não deveria: do outro lado do espelho, onde tudo é o contrário, ou o contrário do contrário natural.

Por isso, te digo: fica aí no espelho, de molho, por pelo menos um ano. Assim, eu poderei readquirir minha respeitabilidade, a confiança abalada e duas ou três amizades perdidas. Quem sabe até eu salve o que restou da minha simples vida.

E para findar essa conversar, assina esse contrato aí em três vias, que serão lavradas em cartório, com assinatura de testemunhas e imputação de multa por qualquer futuro descumprimento da tua parte. Afinal, posso ter uma amiga excêntrica, mas o seguro morreu de velho e advogado bom é aquele que prefere um mau acordo a um bom litígio. Ponto final.



PARTE II

O MIRABOLANTE MUNDO DE MRS. A

Fragmento IV: O Relógio

Certa vez um jovem senhor adquiriu um relógio, eis que em virtude de sua importância e dos vários compromissos que possuía, precisava sempre ter em mente a hora exata para evitar atrasos inconvenientes.

Assim, ele entrou em uma velha joalheria e observou todos os relógios que ali se encontravam. Gostou de uns, desgostou de outros, odiou os demais. Mas, após uma demora não tão prolongada quanto pode parecer, o jovem encontrou dois de que gostara bastante. Um relógio de pulso e um para por em cima de alguma mesa ou outro móvel que houvesse em sua casa.

O vendedor, desejoso de fazer um bom negócio e, principalmente, desvencilhar-se de um despertador um tanto velho e estranho, propagandeava as virtudes dos dois objetos, enfatizando que seria útil ao comprador possuir a ambos. No entanto, o jovem, embora de posses remediadas, achava um desperdício comprar a dupla apresentada. Além do que, o relógio despertador lhe causava uma impressão que ele não sabia bem como definir. Parecia um objeto meio curioso, que lhe provocou imediata simpatia, afeição até.

- Ele funciona bem? Parece meio esquisito. – falou ao vendedor.

- Sim, é um pouco diferente dos demais. Mas é um bom relógio. Às vezes adianta-se um pouco nas horas, outras vezes atrasa-se, mas é só dar corda e ele funcionará a contento. Vai lhe deixar satisfeito. Com certeza.

O jovem olhou para o objeto meio de soslaio, cerrou por uns segundos os olhos, mudou de posição segurando o queixo com uma das mãos, refletiu, e por fim sentenciou:

- É, gostei. Vou levar assim mesmo. Condiz mais comigo este relógio.

O vendedor sorriu.

- Não vais te arrepender, meu jovem. – disse, enquanto preparava um embrulho e sorria intimamente. “Enfim, me livrei! No entanto, era um bom relógio. Pena ser meio torto.”

O jovem foi para casa feliz. Agora não iria mais se atrasar para seus compromissos inadiáveis, suas festas alegres, suas noites boêmias ou de negócios. Contente consigo chegou ao lar, desembrulhou o relógio, deu corda, como recomendado, e colocou-o sobre a mesa da sala, sentando-se a observar por uns minutos o trabalho persistente do relógio.

Então percebeu que o mesmo não fazia um tique-taque normal como os demais irmãos seus que contavam o tempo. Seu novo medidor fazia tic-tic-tac-toc. O rapaz estranhou, mas como havia simpatizado com a aquisição acabou se conformando. Era até melhor assim, pois o jovem, às vezes, se enfadava com coisas convencionais demais.

Esse fato, por sua vez, lhe fez notar algo importante que ele não distinguiu plenamente na loja. Seu relógio era assim, meio torto, de uma tortesa estranha, pois suas engrenagens estavam meio expostas, mas não totalmente desprotegidas, o que poderia ocasionar algum mau funcionamento mais rapidamente. Entretanto, isso o fez gostar mais ainda de sua aquisição, eis que lhe despertava um cuidado maior.

Assim, embora o tic-tic-tac-toc do medidor fosse esquisito e seu motor meio delicado, a máquina trabalhava com regularidade. Também fora agraciada por seu fabricante com uma forma delicada e não totalmente desprovida de beleza. As próprias molas e engrenagens que compunham o motor do objeto eram em si mesmas um belo exemplo da arte do relojoeiro.

Passado algum tempo, o jovem descobriu outro detalhe de seu agora amado relógio: ele atrasava ou adiantava mais seguidamente as horas do que o vendedor havia dito. Isso, a princípio, lhe deixou meio aborrecido, pois lhe ocasionou um adiantamento em certo compromisso que ele queria procrastinar e um atraso em outro que ele ansiava antecipar.

No entanto, após meditar um pouco, ele chegou a uma solução perfeita para o ínfimo transtorno que tal defeito ou qualidade do despertador lhe trazia: ele passou a adiantar, quando percebia que o relógio estava atrasado, ou a adiar um pouco sua saída de casa, ou vice-versa . Acabou por se acostumar e gostar dessa característica do relógio.

Contudo, como todo idílio, justamente por ser idílico, acaba por findar, aconteceu algo que fez todo o carinho do jovem pelo seu torto relógio arrefecer.

Ele descobriu, por acaso, que o pêndulo do instrumento era totalmente recurvado, embora não ocasionasse nenhum problema no funcionamento do relógio. E não apenas isto. Neste mesmo dia, o medidor emudeceu (não se sabe se por que o jovem, em seu desespero em relação ao pêndulo, esquecera de dar a corda necessária para a máquina funcionar, ou porque o relógio decidira apenas meditar em sua torta vida).

O fato é que o despertador não soou o seu tic-tic-tac-toc costumeiro e ocasionou ao seu dono graves transtornos em sua vida de boêmio, de rapaz responsável e festeiro. Isso foi como jogar água gelada numa caldeira, como soar a trombeta derradeira. E o amor, de repente, se fez desamor, restando apenas umas palavras duras, que foram assim expelidas:

- Que me fizeste? Tu me mataste. A culpa é tua, o defeito é teu. Já não te quero.

Talvez tenham sido palavras ditas ao vento, num momento de furor e decepção, pois quando deu as costas ao relógio, já pensando em outro adquirir, o rapaz pensou: “Mas ele me tem sido tão fiel...”. Mesmo assim deixou a casa por horas seguidas.

No entanto, o relógio, que já era estranho, produzia um tic-tic-tac-toc diferente, tinha um pêndulo recurvado e, uma vez, uma única vez provavelmente tenha decidido meditar em sua simples vida, sentiu que seu interior foi ao meio partido. Perdera o afeto de seu mestre. Perdera o sentido de sua vida. Sentiu o quanto era inadequado, o quão era imperfeito. Temeu, também, por sua existência. Pensou que, quando o jovem voltasse, com um substituto mais novo e menos torto, já não teria aquele por que mantê-lo e o jogaria no lixo. Meditou, principalmente, na decepção que causara ao dono que tanto afeto lhe votara.

E foi isto que mais lhe doeu. “Sim, a culpa é minha... sim, o defeito é meu. Dele nada posso reclamar”, refletiu. “Me resta apenas agir como um velho e bom relógio agiria nessa situação. Sair de cena. Salvar a dignidade que me resta e do fardo livrar o mestre.”

Com dificuldades, conseguiu descer da mesa. Por coincidência, encontrou uma porta semiaberta, deslizou para a escuridão e desapareceu nela, sabendo que o caminho o levaria por lugares mais estranhos que ele, que talvez sua máquina parasse completamente de trabalhar por falta de alguém que lhe desse corda, que toparia com seres bondosos ou maldosos. Mas ele com isso não se importava. Importante era seu mestre, e o que ele (simples relógio torto) ainda tinha de qualidades. Seu futuro era incerto. Contudo, a incerteza do desafeto... Ah! Essa não queria jamais provar.

Enquanto isso, o jovem retornava a casa. Abria a porta. Sua fúria tempestuosa já amainara. Percebeu que tudo ocorrera principalmente porque ele se perdera nas linhas de sua própria arrogância desmedida. Sempre fora assim, meio de supetão, de dizer coisas e se arrepender depois. Entretanto, ainda assim, no mais das vezes, esquecia de pedir perdão.

Não comprara um novo relógio. O velho ainda lhe era caro e talvez ainda funcionasse. Olhou para a mesa, mas a máquina ali não estava. Olhou embaixo da mesma e também não o encontrou.

- Estranho. – falou em voz alta. – Eu daqui não o tirei.

Seguiu até o próximo cômodo. Anteviu a porta semiaberta, ou quase fechada. E ficou a pensar: “Será que alguém o roubou? Mas era tão torto e não estava funcionando.” Abriu a porta e observou a noite sem lua, escura como breu.

“Era um relógio torto. Será que criou pernas e escapou?”. Depois riu. Criancice esses pensamentos absurdos. Foi fechando a porta devagar, melancólico por perder assim um relógio tão invulgar, mas ciente que outro poderia comprar, talvez até melhor.

Enquanto isso, na noite o medidor esquisito sumiu. Não olhou para trás, nem sabe se chorou, apenas se foi. Capengando por causa de sua tortesa e por carregar, em seu frágil invólucro, a alegria de libertar a quem dele já não mais precisava, mesmo tendo de suportar o fardo triste de sonhos mortos.


Fragmento VIII: Chapeuzinho Vermelho?

A menina não era tão ingênua quanto imaginavam, nem tão frágil, apesar de ser pequenina. Além disso, ela bem sabia que na floresta existia um lobo mal, mas até que bonito. Contudo, ela não tinha medo dele, nunca tivera, nem quando o encontrara pela primeira vez. Ela não tinha medo de nada, ou quase nada. Talvez, talvez um pouquinho de si mesma, mas também não estava nem aí.

Então, quando sua mãe pediu que ela levasse a cesta, com produtos estranhos dentro, para sua avó, bem no meio da floresta, ela se questionou se sua progenitora seria uma pessoa normal, afinal sabia da existência do lobo devorador de incautos inocentes. No entanto, deu de ombros e obedeceu como sempre. A cândida mãe ainda lhe orientou a não falar com estranhos e, muito menos, como o Lobo. Chapeuzinho revirou os olhos e pensou: “Se ela soubesse com quantos estranhos já falei! Mas é sempre ela que me manda pro meio da floresta escura”.

E a menina lá se foi, mata adentro, carregando sua cesta e sem nada cantarolar, até porque achava a música que aprendera muito chata. Quando chegou numa bifurcação da estrada, eis que salta agilmente de uma moita um belo lobo branco, prontinho para atacar a donzela. Ele foi logo dizendo:

- É hoje, menininha, que vou te devorar! – Ele estava a um passo do pequeno ser impassível a sua frente.

Ela suspirou entediada e disse, mais para si mesma do que para seu atacante:

- Sempre a mesma história. Tu não tens nenhuma frase mais interessante para dizer, além deste velho clichê?

- Mostre mais respeito, criança, senão vai doer muito mais! – rosnou o belo Lobo de olhos cor de mel.

- Oh! Sim, eu sei o quanto vai doer... – dizendo isso, Chapeuzinho desferiu um rápido pontapé bem no meio das pernas do Lobinho belo e não tão mal assim.

Enquanto ele se contorcia de dor no solo em que caiu uivando, ela se foi novamente pela estrada, chegando rapidamente na casa de sua avó. Quando se postou a frente da mesma, observou aquele cenário tão conhecido. Olhou a floresta tão desmistificada, a cesta que sempre carregava obedientemente para sua mãe, que preferia mandar sua casta filha para a floresta, em vez dela mesma enfrentar os perigos que ali poderiam haver por ser mais experiente. E, ao visualizar tudo isso, a menina sentiu um cansaço e um tédio imensos.

Então, ela virou as costas para o chalé daquela avó que nem sabia se era realmente a sua, e saiu saltitando pelo caminho a frente, cantarolando um rock undergroud:

- Pela estrada inóspita vou rapidamente, para desbravar o mundo bem contente...


Fragmento XII: Dimensões Paralelas

E a Chapeleira estava caminhando tranquilamente pela Terra do Nunca, observando lindas paisagens, belas quimeras, revoltas bem digladiadas, com Peter Pan e Capitão Gancho sempre pelejando, mas as normas de Genebra cavalheirescamente respeitando. A dimensão paralela estava orbitando como de costume, para o encanto da passeante. E ela estava contente, embora sua taciturna personalidade estivesse de plantão.

E então, uma bomba explodiu naquele rincão. Peter Pan e Capitão Gancho, assustados com o ataque terrorista, quedaram-se silentes, juntamente com seus comparsas. Alice decidiu expungir, arrepiada com o que via, pois até ela tinha lá os seus limites, e todos os habitantes da quimérica dimensão, calaram-se num repente, pois o ataque fora horripilante.

Um bad warrior psicótico, mas não por ser neurótico de guerra, apareceu então. Gritava sua revolta expelindo foguetes, disparando bazucas, explodindo granadas e metralhando seres doces ou revoltosos...destruindo casas, casebres, palácios, carruagens, carros, matando cavalos ou unicórnios. Nada estava a salvo de sua verberação, sua agressão simplesmente para chamar a atenção para sua loucura ou sua sanidade indigente.

E a Chapeleira ali restou, observando aparvalhada o genocídio que surgia ante sua visão: corpos jogados ao chão, prédios destruídos, veículos de locomoção avariados, e ninguém conseguia fugir daquela danação. E ela viu crianças pequenas, atingidas em seus sonhos puros, tentando ser maduros adultos para digladiar com a devastação, e crianças grandes, tentando mostrar racionalidade e proteger-se a si ou a outrem, mas sem obter nenhuma vitória expressiva. Observou crianças idosas, que na dimensão paralela tentavam ser acolhidas, serem agredidas e mortas sem dó, sem piedade, nem motivo.

Na loucura formada e presenciada, mal percebeu a Chapeleira que também fora atingida e um de seus braços, o que lhe alimentava a mente, estava tetricamente partido. Mas, não sabe se conseguiu, tentou avisar alguns passantes da monstruosidade que estava a solapar o mundo da imaginação. Seu braço talvez pudesse ser consertado, mas seu coração restou dolorido e sua visão começava a desaparecer porque acabara perdendo seus óculos tentando escapulir da artilharia pesada. Conseguiu ao menos acatar todos os conselhos do Gato de Cheshire.

E a devastação se fez tão grande e a guerra tão descabida, e a fumaça ardia tão forte, e o cheiro de morte era tão terrível, que a Chapeleira quedou-se inerte. Pensou: “Se aqui não há, no dia de hoje, guarida, e nada posso fazer pelos desvalidos a não ser chorar lágrimas invisíveis, como Alice vou expungir e visitar outra Orbe”.

Então, ela desligou sei veículo de viagem e aterrizou na Terra dos Gigantes, também conhecida como Realidade, ou Ilha Açoriana. E vestiu sua roupa de menina, colocou seu óculos escuros, seu boné e foi a procura do sonho de que nesta terra, apesar de suas mazelas, ainda haveria algum ser risonho, alguma bondade adormecida, algum recanto de paz e frescura.

E ela caminhou, caminhou e olhou os passantes e alguma paz começou a sentir. Entreviu alguma gentileza, ao ser acolhida na mesa alheia, ganhou um pequeno marcador de páginas de uma doce criança, foi chamada por seu título, que desejava esquecer, mas que já era hábito dos outros reconhecer, brincou com os ajudantes da casa dos livros e ouviu o sonho de formatura de uma estudante, que angustiada estava por ter que ler filosofia e nada poder fazer.

Então, a sonhadora ressurgiu momentaneamente, e lembrou que um dia também fora uma criança que precisara receber incentivos para sua graduação de doutora alcançar. E num ato impensado, doou um livro para a estudante que precisava, mas não o queria receber. Não importava se fora manipulada, não importava as faces incrédulas com a doação praticada como a dizerem “ela não merece”, ou “a doutora enlouqueceu de vez?”. Não importava a inveja entrevista nos olhares dos gigantes que não conhecem a arte da gentileza, nem a necessidade que alguns doarem até o que não têm. Nada mais importava. Ela precisava este ato fazer para novamente crer que ainda era um ser gentil, apesar da dureza que a vida lhe deu.

Então, sentindo-se um pouquinho melhor, ela resolveu retornar ao seu emprestado lar, para descansar das suas aventuras, das suas viagens, das suas dores e alegrias, das suas quimeras destruídas e de toda danação que na Terra do Nunca seus olhos míopes viram, e das gentilezas e invejas que na Terra dos Gigantes sentiu existir.

Lá chegando, seus óculos ainda desaparecidos, teve que encontrar os antigos (talvez, por um tempo, assim fosse preferível, enxergar de menos do que melhor), vestiu seu vestido leve de estar em casa, descansou um pouco, e reuniu as últimas forças para viajar a Terra do Nunca e saber como a Guerra estava sendo travada.

Para sua alegria, o bad warrior havia sido expungido: Peter Pan e Capitão Gancho uniram suas forças, afinal naquele rincão somente eles podiam lutar, pois as normas nobres de Genebra eles ainda conseguiam respeitar, as crianças pequenas, grandes e idosas sobreviventes já estavam sendo amparadas, a paisagem já estava voltando a colorida ser e até a casa da Chapeleira estava em estado de franca reforma. Talvez seu braço não estivesse tão irrecuperável também.

E aqueles habitantes desta dimensão paralela que talvez estivessem viajando na hora da mais terrível guerra já vista nela, ao retornarem embora ainda encontrassem alguns resquícios da batalha ferea, possivelmente nem perceberam o quanto sua orbe, por um momento aparentemente quase interminável, havia estremecido.

Essa guerra iria, com certeza, entrar para os Anais da Terra do Nunca, e a Chapeleira ainda se lembraria do que vira e fizera e sentira na Terra dos Gigantes. Mas, começou a adentrar no mundo do sono concluindo: “Apesar de tudo, sonhar ainda é preciso”.


Fragmento XXI: Ensaio Gramatical

Estou louca. É impossível continuar assim. Estou só. Fico só. Sou só. Sou estranha. Meus hábitos constantes são instáveis. Meus amores são diversos. Não. Não são amores. São vocábulos em brasas, avassaladores. Destroem-me a todo o momento. Não deixam que reste de mim uma só partícula para que eu possa me reescrever. Nada sobra de mim. E, no entanto, eles persistem em ficar e aumentar ou eu os deixo me tomar.

Então, sou só. Fico só. Estou só. Não há como mudar. Não há como voltar atrás. E do que penso ser acabam restando somente rascunhos, que contam a história em partes, sem dar ao leitor ou a mim o real significado do que aconteceu de verdade, do que me partiu, do que me feriu ou construiu.

Estou tão séria. Outros me olham, perguntando-se o que terá acontecido. Não há resposta plausível para isso que me assalta. Quisera que eu nem tivesse percebido. Então, fico aqui, nesse canto. Estou só, sou só, fico só. Talvez eu sempre esteja. Talvez eu sempre tenha sido. Deveria ter aprendido a conjugar o verbo ser solitária (intransitivo, pretérito, presente, futuro mais que perfeito, definitivo e infinitivo) e não ter me enganado, conjugando-o como se eu apenas estivesse ou estava (verbo transitivo, pretérito, presente e futuro imperfeito terminativo, claramente definível). Mas que sei eu de gramática? Nunca aprendi as regras e nem quis sequer memorizá-las. Gostava tanto das indefinições, dos antônimos, das metáforas e simbolismos!

Nunca quis rever conceitos, aceitar sinais de pontuação, trocar palavras por suas irmãs gêmeas, embora sempre me sentisse atraída pelas contradições e perigos dos neologismos e silogismos. E agora estou aqui: só, muda, desconcertada. Ou seria desnorteada?

Acreditei que quem estava a alguns passos de mim é que era um estranho no ninho, que tinha costumes esquisitos. Quis crer apenas na possível excentricidade de minha inquieta alma. Na verdade, tudo não passou apenas de palavras mal escritas ou semintrepretadas, teoria crítica desinformada de uma literatura incompleta e incompreensível, por não dizer nada, nada significar, nada declarar. Nem para mim, nem para outrem. Vazio literário intangível e impenetrável.

Então fico aqui, sozinha, fones no ouvido, olhos grudados num quadrado luminoso onde palavras inverídicas aparecem enquanto vou apertando teclas de plástico insensíveis, formando, sílaba após sílaba, uma frase que não sei se terminarei. Afinal, não estou dizendo nada, ainda que exista muito a ser dito. Prosa que tenta esconder o real significado por trás de todas as coisas que ocorreram, ocorrem ou ocorrerão. Faltar-me-á coragem? Um dia irei admitir que nem toda a verbosidade do mundo pode contar o que eu senti, sinto ou sentirei.

Por isso fico só, estou só, vivo só. Por isso enlouqueci. Quando palavras não podem transmitir o que pensamos, sentimos ou vivemos, será possível acreditar que ainda fazemos parte de algo, ao menos do mundo literário que supostamente redigimos?


Fragmento XVI: O Olho que tudo vê

Ele viu e previu tudo que iria acontecer, menos o que, de fato, ocorreu no final de todos os acontecimentos.

Mas esse olho que tudo viu, vê, deveria ver e acreditava que percebia, continuava a observar a paisagem ao redor, buscando, sonhando, questionando. Algo certamente iria suceder, ou alguma coisa ele teria que fazer se desejasse absorver tudo o que observava diante de si.

Embora fosse apenas um olho, também ouvia. Sentia o tato, o contato, o paladar e o olfato, que se aguçava quando certo odor percorria o ambiente. Ele queria interagir, participar, mostrar sua presença; sentir que era pressentido, sentido, ouvido ou cheirado igualmente. Entretanto, não dizia nada. Revirava o globo em sua órbita para indicar sua ausente presença ansiosa.

E quando lhe perguntavam por que não se manifestava perante tudo que via, ouvia ou sentia, o olho apenas devolvia um olhar suplicante onde tentava fazer com que entendessem sua máxima: “Eu preciso desse silêncio para viver tudo que vejo.”

No entanto, nem todos sabiam (não existia tal obrigação), nem deveriam saber ou entender de olhares. Nem todos aprendiam a decifrar as chamadas “janelas da alma”. E o olho que tudo via, ou assim pensava, continuava a absorver o mundo. Engolfava-se nele, lutava, chorava, ria, mesmo que ninguém compreendesse plenamente o que ele mostrava ou vinha a refletir em sua pupila.

E esse olho-corpo repetiu a máxima tantas vezes já expressada ou repisada em bons ou maus textos: “A pior solidão é aquela que se vive acompanhada.”

Pensamento este que ele completava com outros questionamentos pessoais: “Mas será esta mesmo solidão? E se o é, porque se fica solitário embora acompanhado? É porque assim se quer ou não se consegue evitar? Existe uma obrigação em ficar ou partir? Ou o ser em solitude sofrida ou imposta não sabe dividir, somar, multiplicar, diminuir ou interagir? De quem é a culpa, se é que esta existe?”.

E voltava a observar o mundo, deixando a pergunta de filosofia esdrúxula ou não para responder depois, ou então tentar conformar-se em não obter a resposta, pois, às vezes, era assim: não havia respostas e só.

Então, quando chegou o final lógico, mas não previsto, ou livremente ignorado pelo olho que tudo via, e afinal não, ele apenas pensou: “É isso. Vou apenas esperar. Talvez, se surgir um novo momento, eu tenha coragem para declarar em vez de apenas observar, passivamente, a paisagem a minha frente”.


Fragmento XVII: Stalker

Se eu pudesse eu devoraria um alfabeto inteiro para amainar essa minha fome. São necessárias tantas letras, tantas palavras para descrever o que vai pelo mundo a fora ou interior. Seria preciso até criar algumas novas para melhor definir o que se vê ou o que apenas se vislumbra.

Eu devoraria todos os alfabetos do mundo, misturando todas as palavras existentes ou ainda por virem a existir para poder contar o que eu vi, o que não vi, o que eu quis ou do que abri mão.

Uma a tartaruga segue nadando no canalete, espiando a vida sobre a água na qual navega e que é insuportavelmente poluída quase sempre, ou todos os dias. E eu vou perseguindo o bicho, tentando entender como ele consegue respirar ali, logo ali, naquele pequeno riacho negro, embora aparentemente límpido. Tentando entender como ele continua vivendo, apesar dos resíduos que precisa engolir durante seu nado sincronizado. A tartaruga se sente acuada, perseguida e se pergunta: “O que essa louca quer atrás de mim?”, posso ver a pergunta refletida em seus olhos anfíbicos, que também me observam atentamente.

E o alfabeto sorrateiro que se instalou em minha psique segue marchando catatonicamente em meu cérebro, produzindo palavras com ou sem significado: felicidade, displicentencefalodolormente, solidão, otromoaçaroc, rotina agridoce de cafeteria sem freguês, oasulised...

E as reações adversas que a toda hora me suscita a literalidade das coisas percebidas me fazem estarrecer diante da inércia que me vai tomando. Não. Não sou, ou não estou me dessensibilizando. Apenas endurecendo e isso me assusta. Por que a dormência nunca foi meu ser irrequieto. Mas essa voz em meu cérebro tem que se calar a qualquer preço.

A tartaruga já percorreu bem mais que cem metros: sou uma ‘stalker’ de animais. Essa tortura quebra a paz deles e me concede certa satisfação: tentar capturar a foto que marcaria a existência de um ser vivo num ambiente impróprio para a vida e sua perpetuação. Talvez isso seja esperança?

Volteiam palavras em minha catastrófica mente. A poluição sonora me abala os nervos. Fujo de vozes humanas. Eu queria apenas o barulho de algo que não existe, enquanto isso ele vai compondo estrofes com as palavras do alfabeto corriqueiro. Quero perseguir a antiga ideia de que tudo é possivelmente remediável ou, ao menos, possível de ser suportado.

Navegam peixinhos no aquário poluído do canalete riograndino. Sinto falta das hortênsias que aqui cresciam. Deslizo a mão pela amurada. Espreito mais uma vez a tartaruga, coitada, que ainda se sente assustada de mim. Queria eu ser ela.

E o alfabeto, talvez, será minha salvação ou perdição. Mas nada vai conseguir matar essa minha fome, pois a música açaima minhas paixões aniquiladas. Não irão sobrar palavras, mesmo oriundas da inventividade, para limpar a degradação que adentrou a cidade de forma tão inesperada.


Fragmento XX: Humor Vítreo

Pombos pretos a pairar sobre a abóboda medieval pensam ser corvos a espreita do cadáver do qual se aproxima o funeral. Garras afiadas em patas escuras, do gato preto, ser noturno, que se arrisca a desfilar a luz do sol, para ocultar-se até que horas tétricas lhe permitam começar sua caçada habitual.

E o cadáver ali, no fúnebre caixão abismal. Os entes queridos do morto, que de suas faces deixam vertes lágrimas, não sabem se choram a perda do então falecido ou sufocam por causa do miasma produzido pelo calor infernal.

Ah! Dores extremas açoitaram o pobre defunto que jaz próximo de baixar a sua última pousada. Quem tão atroz veleidade praticou, arrojando da vida um pai de família que ora está prestes a ser devorado por vermes impertinentes, estes seres malditos que todos temem?

Andava o ora morto, outrora vivo, por uma rua escura, retornando do labor diário que mal pagava as compras para saciar da família sua fome natural. Vinha cansado, arrastando os pés, depois de horas sem fim numa repartição pública obscura. Mas vinha em paz, dever cumprido, o parco salário no bolso: ia encontrar pouso e um certo descanso afinal.

Entretanto, ao chegar ao escuro beco que levava a sua humilde pocilga familiar, algo lhe arremete brutalmente contra a parede de tijolos. Escorre sangue pela mesma, crânio partido, mas o trabalhador ainda respira. Uma sombra se projeta sobre o infeliz e lhe rasga a garganta e devora as partes mais suculentas de seu corpo, enquanto o pai de família expira e seus olhos arregalados absorvem a figura que, parcamente saciado, agora se afasta cambaleando pela viela fria.

No outro dia, vizinhos horrorizados chamam a polícia, a família desatina. As investigações nada deixam escapar, mas também nada conseguem provar. Sentenciam as autoridades: “Foi um bárbaro meliante. Nenhuma pista mais há. O salário ficou, deve ter se assustado com alguém que estava a passar”.

E o morto foi transportado a sua casa, encomendado o caixão, realizado o velório. Lágrimas derramadas e, enfim, o enterro onde mulher e filhos, junto com os vizinhos sorumbáticos, não conseguiam entender o crime praticado, nem a fácil desistência das autoridades em buscar o criminoso nefasto.

Mas se algum deles fosse entendido, ou respostas realmente desejasse encontrar, bastaria observar o humor vítreo dos olhos cadavéricos e encontraria a última imagem que o falecido gravou em sua mente.

Enquanto o funeral terminava, o circo de horrores que sempre permaneceu naquela gélida cidade, e era sua atração principal, partia, levando em um de seus vagões a aberração que causara a cruel carnificina.

Portanto, ponde-vos atentos leitores destas estranhas linhas. Vós não acreditareis jamais no que ora vos alucina.


Fragmento XXIV: Apenas mais uma História de Amor

Por que estes olhos tristes, menininha? É porque teu principezinho ainda não chegou? Por que não tens aquela bonequinha que viste na vitrine? Por que não ganhastes os doces que querias? Ou será porque teu sorriso chora lágrimas, mesmo quando estás com gente boa?

Porque, porque teus olhos castanhos tão grandes e belos mostram tão limpidamente para mim essa tristeza, que não cabe nesse mundo de Deus, mas que outros parecem não ver?

Tens uma travessa amarela para alegrar teus curtos cabelos, onde se percebem minúsculas bolinhas brancas. Serão pequeníssimos flocos de neve? Ou sugerem a existência de alguma coisa viva a transitar em tua cabeça?

Teu pequeno corpo está coberto por um vestido meio curto (creio que não era teu, como tudo que tens), um casaco batido de pelo mesclado e teus pezinhos calçam tamancos, sem meias, deixando a mostra uns dedinhos meio roxos, com unhas um tanto enegrecidas, que bem combinam com a tua vida insípida. E teus olhos de longos cílios continuam a refletir essa tristeza que somente alguns adultos conhecem.

Então, me conta: porque estás tão triste, pequenina? Será por causa da travessa que não combina e nem alegra teus cabelos opacos? Será pelos minúsculos flocos de neve ou de outras coisas que vivem em tua cabeça? Pelo vestido curto que nunca foi teu realmente? Pelos tamancos que não aquecem teus pés?

Sentirás falta de teus pais que quase sempre estão viajando? Tens medo das pessoas que hoje estão a tua volta. Desejas o caderno de desenho do teus dois irmãozinhos, que se distraem rabiscando figuras fantásticas, enquanto tu, tu tens que te tornar algo maior,  deixar as fantasias para eles e cuidá-los contra o mundo? Aliás, quem cuida de ti, menininha triste?

Será que alguém vê tua pobreza, teu frio, teus medos, tuas tristezas, tua solidão, teus pequenos sorrisos tímidos, teus sonhos secretos de criança crescida? Será que alguém ama a ti, tão grande e pequena, tão inocente e tão suja, tão triste, tão infeliz?

Então, teus dedinhos das mãos encontram os cabelos da moça bonita ao teu lado e que hoje, por um breve momento, está zelando por ti. São tão macios, tão lisos, tão brilhantes. Tu o afagas com um misto de inveja e alegria por conseguir o que tanto desejavas.

Será que eles lembram os teus cabelos quando eram compridos? Será que tu os deseja para ti? E um sorriso verdadeiramente feliz brota em tua pálida face e ilumina teus olhos escuros por um segundo. Ah! Este teu sonho! Querias ter cabelos compridos e bonitos como o da tia que, ao menos hoje, cuida de ti.

Ah, menininha! És moribundamente triste, como a tristeza do mundo que vive de sentimentos mortos, preferindo a fantástica hipocrisia de livros amorosos do que ver o amor nos tristes olhos de menininhas pobres como tu.

  

Fragmento XXIII: Gestação

Estou grávida: de uma gestação um tanto estranha, talvez aziaga. Que dizer? Em meu ventre estão se desenvolvendo, ao seu bel prazer, criaturas normais e aberrações conjuntas ou individuais. E eu os estou parindo juntos, ou um só por vez, já por toda esta minha vida inteira ou partida.

A cada ano estes esquisitos filhos meus vão nascendo com rapidez cada vez maior, ou pouco a pouco, um por um ou muitos de uma única vez: idéias, planos, desejos e insensatez, teses, pensamentos, poemas e devaneios. E eles vão saindo assim, sem avisar-me, ou com dores lancinantes que me levam ao parto mais doloroso, ou através de abortos indolores, onde somente o sangue, que jorra farto e rubro, denuncia ao mundo a criatura já não tão nova que lancei ao mundo.

Estes seres podem beleza possuir, acalentar outras criaturas que pela mesma estrada passam, ou podem ser aleijões que rasgam as humanas delicadezas, destroçam a natureza e nem sequer em perdão pedir se importam. São filhos monstruosos e dementes, trazendo terror, com suas ações libertinas, ao mundo que originei. Enquanto isto, os lindos irmãos seus, tão ternos, doces e puros, se não medram e fogem, tentam reparar os danos dos mentecaptos fraternos seus.

E há, ainda, os enjeitados rebentos que gero e escondo no canto escuro da minha icefire casa. São os filhos abandonados, que de mim afasto com repugnância, não por serem monstros ou belos, mas por serem incompletos; por terem sido gerados e nunca complementados. E eles ficam a olhar-me do escuro, com seus olhos brilhantes de amor e esperança, encolhidinhos, sem reclamar.

Se eu pudesse, a estes já teria matado ou mandado matar, mas seus olhos refulgentes na escuridão, detentores de um amor por mim tão incondicional, como o cão que é chutado pelo dono e mesmo assim lambe suas feridas, fazem os meus baixar de vergonha. Então, não os deixo de mim se aproximarem. Contudo, jogo-lhes nacos de alimento à distância, sem retirar-lhes totalmente as expectativas, mas sem conceder-lhes total esperança de encontrarem liberdade.

E como se já não bastassem os filhos legítimos, sejam belos, feios, enjeitados, ternos, incompletos ou feros, ainda decidi dar acalantos a um bastardo espoliador, que em meus seios quer, a todo o momento e incansavelmente, alimento obter.

Adotei o renegado, crendo que era domesticável, compreensível e alguma sensatez poderia lhe dar. Abracei o filho maldito chamado de “Conjunto de Normas de Relação”. Certamente, com tal nome, somente poderia ser danação. E ele não se nutre apenas do leite meu já tão escasso, mas suga meu ser até de mim a seiva última espremer.

Quem mandou eu, uma criatura estéril, tão maternal ser? Quem me deu estas ânsias de parir um universo e pseudo-segurança, de que a ele conseguiria gerir, quando sabia antecipadamente que meu corpo débil não teria forças para manter a ordem, nem impedir o caos de a minha porta bater, nem poderes para as doces ou tétricas criaturas minhas conter de fato?

No entanto, a gestação espúria desta mãe-férea-terna continuará a ocorrer e findará apenas quando eu deixar de existir. Ainda nascerão outros filhos diletos, tortos, rejeitados, belos, incompletos ou ferozes. Não poderei evitar tal fado tépido ou terrificante: nasci para parir e, ao fim, em minha lápide, talvez um lindo e melancólico epitáfio escrever.


FRAGMENTO FINAL:

Álbum de Fotografias

“Estou triste: de uma tristeza meio morna que aquece e esfria meu ser. Como se faz para juntar o antes, o depois e mais o meio que se perdeu entre um e outro e parece não fazer parte do contexto? São fragmentos temporais estes. Não se reajustam, não se complementam e parecem um álbum de velhas fotografias, onde só restaram fotos desconectadas das épocas em que posei para elas”.

E a vida prosseguia assim. Ela juntava pedaços de tempo: alguns alegres, outros emotivos, outros tristes, como de praxe, tentando restaurar o álbum de sua vida que em algum momento fora assaltado e quase aniquilado.

“Estou alegre! Hoje recuperei uma parte de um livro que eu havia esquecido na praia e quase foi levado pelas ondas. Era o último pedaço de uma obra rara. Quando de lá sai não me dei conta que havia esquecido esse delicado trabalho. Mas um frequentador assíduo das praias alheias, percebeu meu descuido e guardou a raridade até que, em algum momento, eu voltei aquele lugar e ele me devolveu o que a mim pertencia, mesmo que fragmentado”.

Por vezes a vida lhe fugia e quando ela conseguia recuperar algum vestígio do que ela esquecia ou escondia, sua alegria voltava, embora de forma levemente melancólica, pois ela não conseguia se responsabilizar pelo que era seu. E isso, com o tempo, lhe causava transtornos e a tristeza ressurgia. Mas, por hora, ela tinha um novo motivo para ficar contente, mesmo que apenas por alguns dias.

“Estou emotiva. Presenciei um acontecimento que me tocou assim como uma sinfonia. Era tão bela a cena e tão triste! Nada pode descrever com exatidão o que eu vi. Então, vou fechar os olhos para manter na memória esta ocasião indescritível, como uma das fotos bonitas ou feias que perdi e desconjuntaram meu tempo, mas que poderei, ao menos, evocar do meu centro nervoso para lembrar os sentimentos que um dia eu vivi”.

E assim sua vida se resumia. Navegar no tempo de forma estranha, como um relógio que anda de trás para diante, ou vice-versa, com seu tique-taque normal ou exótico, descompensado pelo que ela ia perdendo ou ganhando, sem nunca conseguir explicar o que de fato perdia.

Seu tempo era diverso do tempo dos demais. Quando ganhava, perdia, quando perdia, não ficava totalmente privada, mas também não adquiria muita coisa. Somente sua confusão temporal continuava a existir. Não importava se o relógio podia dobrar a fenda dimensional, estagnar o correr do dia, adiantar a passagem da noite. Ela estaria sempre perdida entre o meio, o início e o final.

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