PROSA

MARGINAL*


“A vontade que eu tenho mesmo é de jogar tudo pro alto. Acabar de vez com tudo e me entregar à marginalidade. Esquecer as regras, me tornar um pária, agarrar a metralhadora e sair disparando contra tudo e todos. Largar esse trabalho, com seu sorriso diplomático forçado para agradar senhores e senhoras, onde tenho que ser educado pra não levar um chute no traseiro do patrão. Vender cultura. De que adianta? A maioria nem educação mostra quando vem aqui para comprar.
Então, a vontade que tenho é essa. E por que não? Seria uma alternativa. Uma vida marginal, distante de formalidades, de concepções preconceituosas sobre o que é bom ou ruim, sobre o que tenho que fazer ou dizer para agradar a quem quer que seja.
Até já me vejo na Praça Dr. Pio, perto do eucalipto mais antigo do Estado, ou na Xavier, perto do chafariz, ou na Tamandaré, em frente ao monumento ao herói farroupilha, disparando a metralhadora, tirando três ou quatro notas dela, desafinadas, gritando umas palavras meio loucas, mas que a multidão iria gostar. Vejo meu filho, meu piá, com uma faixa na testa, segurando o cabelo levemente comprido, de bermudas e camiseta, cantando junto ou dançando, fazendo a plateia sorrir de sua ingenuidade. E a minha guria, a mulher da minha vida, me acompanhando com o chapéu na mão para arrecadar o que quisessem me dar pelos disparates ou verdades que eu metralhasse.
E pra completar, eu venderia versos por cinquenta centavos, rabiscados às pressas em uma folha meio amassada de um caderno qualquer que eu tivesse à mão, versos mal escritos para quem não os entendessem, versos bem escritos para quem soubesse ler. Poesia de primeira ou quinta categoria, odiada por ultrapassar as margens confinantes do papel, amada por expor a fealdade do mundo real.
Mas para as velhinhas simpáticas, aquelas que ficam nas praças por causa da sua solidão, ou para os mendigos, eu doaria meus textos mais belos, minhas músicas estropiadas e desafinadas, contudo singelas. E para as crianças, eu pintaria desenhos estranhos sobre astronaves e seres de outro mundo ou de seus heróis preferidos.
Eu seria expulso das praças várias vezes por não ter o devido registro, mas sempre voltaria. Eu seria uma praga, um desconforto, um louco, um bandido. Mas eu viveria disso, dessa vida e escrita de artista marginal. Talvez isso fosse melhor do que ficar sorrindo como um boçal, num emprego que, se paga as contas, não alimenta o coração, não satisfaz a mente, nem estimula a compaixão”.
Então Marília gritou: “A comida tá na mesa. Vem senão vais te atrasar”.
Ele baixou a cabeça, sorriu triste e desligou a filmadora.
Agora iniciaria sua encenação.

*Conto publicado no livro "Estranhamento, Scortecci, 2012.



HUMOR VÍTREO



Pombos pretos a pairar sobre a abóboda medieval pensam ser corvos a espreita do cadáver do qual se aproxima o funeral. Garras afiadas em patas escuras, do gato preto, ser noturno, que se arrisca a desfilar a luz do sol, para ocultar-se até que horas tétricas lhe permitam começar a carnificina. E o cadáver, ali, no fúnebre caixão abismal. E os entes queridos do morto, que de suas faces deixam vertes lágrimas, não sabem se choram a perda ou sufocam devido ao miasma produzido pelo calor infernal.

Ah! Dores extremas açoitaram o pobre defunto que jaz próximo de baixar a sua última pousada. Quem tão atroz veleidade praticou, arrojando da vida um pai de família que ora está prestes a ser devorado por vermes impertinentes, estes seres malditos que todos temem?

Andava o ora morto, antes vivo, por uma rua escura, retornando do labor diário que mal pagava as compras para saciar da família sua fome natural. Vinha cansado, arrastando os pés, depois de horas sem fim numa repartição pública obscura. Mas vinha em paz, dever cumprido, o parco salário no bolso... ia encontrar pouso e um certo descanso afinal.

Entretanto, ao chegar ao escuro beco que levava a sua humilde pocilga familiar. Algo lhe arremete brutalmente contra a parede de tijolos. Escorre sangue pela mesma, crânio partido, mas o trabalhador ainda respira. Algo se projeta sobre o infeliz e lhe rasga a garganta... o pai de família expira, enquanto seus olhos arregalados absorvem a figura que ora se afasta cambaleando pela viela fria.

No outro dia, vizinhos horrorizados chamam a polícia, a família desatina. As investigações nada deixam escapar, mas também nada conseguem provar. Sentenciam as autoridades: “Foi um bárbaro meliante... nenhuma pista mais há. O salário ficou, deve ter se assustado com alguém que estava a passar”.

E o morto foi transportado a sua casa, encomendado o caixão, realizado o velório. Lágrimas derramadas e, enfim, o enterro onde mulher e filhos, junto com os vizinhos sorumbáticos não conseguiam entender o crime praticado, nem a fácil desistência das autoridades em buscar o criminoso nefasto.

Mas se algum deles fosse entendido ou respostas realmente desejasse encontrar, bastaria observar o humor vítreo dos olhos cadavéricos e encontraria a última imagem que o falecido gravou em sua mente.

Enquanto o funeral terminava, o circo de horrores que sempre permaneceu naquela gélida cidade, era sua atração principal, partia, levando em um de seus vagões a aberração que causara a cruel carnificina.

Portanto, ponde-vos atentos, leitores destas estranhas linhas. Vós não acreditareis jamais no que ora os alucina.


ENCRUZILHADA

E todas as rotas levam ao mesmo lugar, mesmo quebrando as esquinas, saltando os buracos e poças, as ruas me trazem aqui outra vez, nesta encruzilhada que já conheço. Um bravo a ilusão de que vivi!

Nenhuma surpresa me aguarda. Vejo a esperança, sorrateira, ir dobrando na conhecida curva, tão rápida e tão lenta – num jogo de pique-esconde que eu já percebi antecipadamente que não vou vencer – e assim eu me aproximo e me afasto dela, que ri como uma criança travessa.

E olho para o reflexo no espelho do lago soturno que existe neste estranho bosque, e pela enésima vez me pergunto: “Será que ele sabe? Será que ele não vê? O que restou daquele tempo, afinal?”

Este ser, agora, é uma cela. Onde estará a chave para abri-la? Mas se nem fechadura ou tranca há?... “Será que alguém viu? Alguém percebeu?”. Perdi minha porta de entrada e ele nem sequer se mexeu.

Então fecho os olhos e meus devaneios me levam aquele lugar onde tudo que a mim pertence me toma ou se desfaz. “Se existe infelicidade, ela é um fardo tão grande, tão grande que dá um calafrio na espinha e ainda por cima é inevitável. Mesmo que fujas, que finjas, ela estará ali ou acolá e teus olhos serão os mais tristes e escuros do mundo, embora ninguém perceba”.

E é por isso que digo:

“Eu sempre fui uma planta estranha: nem rosa, nem margarida, nem orquídea, nem lírio, e mesmo assim tão cheia de espinhos e venenos... Eu avisei, eu avisei”.
No entanto, ousaste ficar, embora soubesses dos arranhões, da intoxicação. Agora tudo se foi, ou parece ter ido, e não há como restaurar o espelho quebrado do lago antes tranquilo, mas que foi agitado por uma pedra lançada displicentemente. Pequenos círculos se propagam na superfície em ondas que repercutem e criam novos abalos, apesar do maremoto já ter passado.

Como frear agora a dissecação dessas estranhas e altissonantes sensações? Jaz a solidão a retumbar no recôndito ambiente onde, de mão posta sob o queixo, analiso os passantes a falar, a sorrir, a chorar ou a calar, embora seus pensamentos flutuem ao seu redor e eu os veja e sinta tão dolorosamente.

Eu sinto isso aqui, no acolchoado do peito, a murmurar, a transgredir meu ser: “Ah! Por que foste partir? Por que foste voar, sorrindo, em outra parte do universo, me deixando aqui a sentir esse não sei o quê, a ferir meu coração, estraçalhando o que dele restou, quebrando essa exótica máquina, que eu acreditava, antes, ser imperturbável? Pois tu a perturbaste, tu a esmigalhaste entre tuas mãos, sem dó. Agora quem irá consertar esse triste coração morto?”

E é por isso, afinal, que mesmo rindo das brincadeiras das crianças, mesmo vendo o belo dia de sol e sentindo seus raios tépidos deslizando pelo meu corpo e me enchendo de uma entusiástica energia, eu não posso, eu já não consigo falar de nada, muito menos dessa tal felicidade, porque ela se foi quando tudo que não começou terminou e o que já tinha um lindo início encontrou um trágico fim. 



SOB A PELE



Sabe o que é? É que a música entranha assim na pele, ataca os nervos e sobe lenta, dolente e dolorosamente por eles até atingir o cérebro, que explode como se uma bomba atômica de sensações, cheiros, emoções o atingisse.

E o centro nervoso perde o norte: chora, ri, emudece, grita, reflete... Mil mãos não seriam suficientes para catar cada nota que esvai dele todos os sentidos atingidos... Mil pés não conseguiriam ser tão rápidos para correr e alcançar cada timbre, cada grave ou agudo que desatina a razão nesse instante. Então é assim.

Sabe como é? Não toque uma música para mim se não puderes deixar que eu sinta cada agulha que ela crava em meu coração.

(06/01/2012)



AMENIDADE

Eu tenho essa tristeza dentro da minha carne, essa tristeza assim: estranha, que me faz rir de tudo, que me torna inquietamente alegre e expectante.
Eu tenho essa tristeza há tanto tempo que até me acostumei a viver com ela e chego a crer que, se um dia, eu não a sentisse talvez eu já não soubesse mais que eu sou ainda “eu”.
Eu tenho essa tisteza assim levinha: por coisas que não vi, por coisas que não vivi, sonhos ou desejos que entrevi, mas não tive coragem de externar ou realizar.
É uma tristeza, como disse, tão leve, tão saudosa e doce que quase nem se nota, quase nem se toca (inclusive, às vezes esqueço-me dela e acredito sinceramente que sou plenamente feliz), e quando, porventura, sem querer, ela se deixa quase ver, ocorre um lapso temporal brevissímo e silencioso e já no outro segundo não é mais possível ver em mim o sinal da pequena melancolia que me corroi o cerne da alma.
Ah! Mas ela está aqui, está aqui! E pinta algumas nuances de cinza em meus dias mais coloridos e satisfatorios. Esfumaça levemente o tom vermelho que tanto aprecio de alguns sonhos juvenis que ainda acalento.
Então, é assim: eu tenho essa pequenissima tristeza em minha mente que, por vezes, faz surgir algumas pocinhas de água em meus olhos. Mas eu não as deixo transbordarem nesses instantes de dor amena, pois seria um desperdicio deixar que chovesse de minhas pupilas gotas salgadas por causa de uma tristeza tão efemera.
Aí eu me conformo apenas. A vida tem dessas coisas, dessas alegrias grandes e transbordantes que fulminam o ser e passam por cima e por dentro dele como um ciclone. E a vida tem dessas tristezas leves e pequenas que encobrem e afogam a pessoa como uma lagoa placida e cristalina que nunca transborda suas margens.
(15/12/2011)


O QUARTO[1]

Estou em Porto Alegre. Mais uma vez. Desejando esquecer o que está lá atrás, desejando voltar a ter o que perdi antes dos dez anos. Observo a multidão que vagueia pelas ruas, praças e centros comerciais, com ou sem suas crianças, sejam seus filhos, sejam as reconditamente escondidas.
“Onde foram parar todas elas?”, me pergunto. “Pois quase já não as vejo, nem as pequenas, nem as grandes...”
E fico a escutar um som estranho que ressoa na loja onde estou adquirindo o brinquedo para adultos que eu tanto queria, a máquina fotográfica de última geração, que me permitirá ver o mundo através da lente, mas não capturará imagens coloridas.
E essa melodia tão conhecida e desconhecida, por tão delicada e inocente, vai me fazendo recuar no espaço e sinto-me retornando a minha casa, distante quatrocentos quilômetros. Vejo-me diante da entrada do quarto cuja porta lacrei por precaução. Não queria mais rever o que ali escondi.
Mas a mão desobediente alcança a maçaneta, move a mesma e, com um suave empurrão, faz a passagem abrir-se. Lá dentro a escuridão e o pó e o cheiro de mofo de objetos guardados a não tanto tempo, contudo embolorados, porque não eram mais desejados por sua dona.
E adentro o recinto, meio sobressaltada, meio constrangida, meio enjoada pelos cheiros e ácaros que ali se encontravam. A parca luz me permite entrever alguns seres que projetam sombras confusas ou assustadoras na parede. São agora tão estranhos...e mesmo assim tão conhecidos.
Observo a sombra da girafa órfã que adotei porque tinha manchas somente de um lado do corpo e que tão grande impacto me causou na casa de brinquedos em que a encontrei, por sua trágica história nas savanas africanas, que nada pude fazer a não ser levá-la para minha casa, agraciá-la com o nome de Matilda (o porquê eu nunca soube) e dar-lhe o que ainda me restava de carinho.
Reencontro meu velho amigo tigre, Smart, tão encardido que nem parece mais o mesmo, logo ele que tantas aventuras viveu comigo, nas florestas da Índia. E a lagarta Milu, que toca uma música meio enjoada quando apertamos uma de suas patinhas, mas muito engraçada, e que eu ganhei porque achei-a tão encantadoramente feia e graciosa.
Acho Bongo, que sempre me recorda o filme “Congo”, mesmo que neste não apareçam orangotangos, e que me fez comprar um celular somente para que eu pudesse levá-lo comigo, atirado e empoeirado numa velha poltrona, esquecido e ressentido.
Ainda vejo alguns outros conhecidos que foram trancados no quarto escuro e solitário, para que eu pudesse esquecer o que perdi e o que ninguém aceitava que eu tivesse. Todos entristecidos, aborrecidos, sujos, denegridos. Logo eles que foram tão úteis para alguém que nunca havia tido brinquedos de verdade ou de invenção antes.
Deslizo a mão sobre alguns deles, que tentam se esquivar, pois em sua anterior selvageria já estavam acostumados com a minha estranha forma de domesticá-los. Agora eles não eram apenas selvagens, eram rebeldes, os deslembrados prisioneiros em um zoológico que não recebe visitações.
“Como pude assim esquecê-los? Assim renegá-los, magoá-los? Não sei, não sei”, balanço a cabeça confusa. “Eu perdi os meus brinquedos ou foram eles que me perderam? Ou eu me acovardei e fugi?”
E de repente, me vejo sendo arrastada do quarto por uma força que eu não senti. A porta bate com estrondo, deixando os seres na escuridão outra vez. Volto a me encontrar na loja em que estava escutando a música de brinquedo que me fez viajar no espaço e entrar naquele quarto selado por mim mesma.
Acabo por me lembrar de Mario Quintana, que só queria seus brinquedos de volta, porque era um menino que havia envelhecido, um dia, de repente. Ah! Eu não quero perder meus brinquedos novamente!
Então compro o DVD com a música de brinquedo mágica. Quem sabe, ao voltar, eu tenha coragem de abrir aquela porta novamente e resgatar meus amigos da solidão que estão sofrendo.


[1] Inspirado no DVD “Música de Brinquedo”, da Banda Pato Fu, produzido em 2011, e no poema “Recordo Ainda”, de Mário Quintana.

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