domingo, 21 de setembro de 2014

A ARTE DA DERROTA

Tinha feito a escolha mais dolorosa, por isso nunca deveria ter lembrado, mas a música incitou as memórias a retornarem a sua mente, tão insidiosas quanto eram no começo.

Era preciso, novamente, arrancá-las a ferro e fogo dos seus neurônios, mesmo que fosse preciso decapitar sua cabeça, o que, definitivamente, resultaria na morte de seu corpo. Isto seria muito ruim, com certeza, mas era melhor do que viver o inferno de reminiscências ressuscitadas extasiando suas noites.

O mal, portanto, deveria ser cortado pela raiz; arrastado pela lama; apedrejado em praça púbica, esquartejado e, por fim, queimado até que não restasse sequer uma partícula de pó.

Então, a ansiedade que tomava seu corpo, neste momento, encontraria seu fim e voltaria a reinar a paz no principado de sua mente conturbada. Mente que, sempre soubera, fora idiotizada, buscando encontrar a realidade em sonhos abstrusos de uma felicidade impossível. Por isso, sempre ocultara essa característica psíquica com um racionalismo duro, cortante e infinitamente difícil de ser derrubado nas conversas e debates mantidos com conhecidos e afins.

Certamente tinha conseguido evitar sentimentalismos desnecessários. Somente a alguns tinha permitido que entrevissem o seu lado mais doce e afável. Tão poucas eram essas pessoas que, quando conseguira despejar do seu peito aquela chaga que lhe rasgava a pele, arranhava seu interior e explodia seu coração, elas ficaram um tanto surpresas, mas, como de praxe, aceitaram o fato e seguiram suas vidas prosaicas sem olharem para trás.

Ninguém lamenta a perda de um ser que não se mostra humano.

No entanto, para sua infeliz satisfação, acabou reabrindo o baú das antigas torturas e lá estava: aquela lembrança, ainda vermelha e pulsante. Sentiu que ela impactava de forma fulminante seu âmago, como se nunca tivesse sido debelada.

E, pior, vinha acompanhada de uma ou outra memória mais atual que estava atazanando sua vida presente, tornando tudo mais irrefreável do que anteriormente havia sido.

Então, o que fazer? Se os dados tinham sido outra vez lançados, seria possível impedir que eles caíssem ao chão e mostrassem aqueles seis pontinhos, que determinariam sua derrota para as lembranças que sufocava ou sua vitória sobre estas, o que repercutiria numa momentânea e satisfatória infelicidade?

Refletiu nisso tudo com a mão apoiada no queixo, olhando a chuva que teimava em não se afastar da cidade nem de sua mente riscada por raios e trovões.

Levantou-se finalmente, vestiu sua armadura enferrujada, pressionou o elmo sobre sua cabeça e montou o cavalo baio de sua desgraça. Refreou o animal cabisbaixo por alguns segundos, enquanto olhava dois ou três anjos que jaziam mortos a sua frente. Lá adiante, sobre uma colina, seres etéreos protegiam moinhos que outros acreditavam ser gigantes.

Enfim, deu rédeas ao alazão que montava. O animal, apesar de sua beleza e força, galopava como se fosse um pangaré.

Hoje, tal qual Dom Quixote, iria lutar com moinhos.

Tinha certeza que, desta vez, também perderia. Mas não importava. Desejava apenas que a batalha terminasse e pudesse voltar outra vez para sua existência despida de ficções.

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