terça-feira, 22 de outubro de 2013

FUNDIÇÃO


Sabe quando te dá aquela vontade de pegar o carro e sair dirigindo sem rumo, mesmo que seja pelas ruas e vielas da cidade em que moras, escutando músicas antigas que somente a ti fazem sentido?
Sabe quando bate aquela sensação de que tudo está escorrendo, o dia, a paisagem, as emoções e, por absurdo que pareça, teu próprio corpo até?
E quando te olhas no espelho,  vês uma poltrona que não é nem nova, nem velha, apenas aparenta não ter mais serventia, e nela, largada de qualquer jeito, uma mulher  que até pode ser bonita, sentada, com um vestido de festa, mas a metade do rosto, do corpo, de um braço e perna escorrendo, em direção ao chão de um cômodo qualquer, o que não permite que se defina, seja a aparência daquele ser, seja sua idade ou que tipo de vida e sentimentos ela têm.
E sentes uma sensação de 'déjà vu' dentro do peito, como se a imagem não fosse conhecida, contudo, estranhamente surge a sensação de que estás revivendo aquele momento.
Então, ainda desejas andar pelas ruas da cidade cinza, ainda queres ir até a Laguna e ver as lanchas partirem em direção a São José do Norte, ainda queres de alguma forma fugir para outra dimensão, enquanto percebes que o corpo que escorre tão lentamente, a ponto de perder a identidade, agora é o teu, que não pode partir, que não pode largar tudo e ficar andando por aí, sem rumo, sem um senso de utilidade.
O coração sofre um baque: é uma coisa que assusta de tão intensa, mas não é possível de definir o que seja. É um desejo, uma ânsia; quem sabe uma perda que te faz parar momentaneamente no espaço e no tempo.
Fica a certeza de que algo está fragmentado, e, mesmo assim, é preciso prosseguir, é preciso segurar esse momento e contê-lo antes que ele acabe com o que tens ou sentes. Mas sabes, ah! tu bem sabes, que o que ocorreu não poderá ser costurado e o que vem pela frente talvez fique parado na esquina da próxima rua, que não cruzarás, que não cruzarás porque não é possível ir adiante.
Ficarás naquele lugar, imóvel, como a mulher da poltrona, escorrendo teu ser sem que possas impedi-lo, até que tua identidade tenha se fundido com o passado, presente e futuro do lugar em que habitas, e deixes de ser para tornar-se algo.
Pois bem, é assim que se sentem alguns que desejam avançar no tempo, contudo, escorrem pelas beiradas dos acontecimentos sem nunca participar realmente deles.

2 comentários:

Brisa disse...

'Fica a certeza de que algo está fragmentado, e, mesmo assim, é preciso prosseguir, é preciso segurar esse momento e contê-lo antes que ele acabe com o que tens ou sentes. Mas sabes, ah! tu bem sabes, que o que ocorreu não poderá ser costurado e o que vem pela frente talvez fique parado na esquina da próxima rua, que não cruzarás, que não cruzarás porque não é possível ir adiante.
Ficarás naquele lugar, imóvel, como a mulher da poltrona, escorrendo teu ser sem que possas impedi-lo, até que tua identidade tenha se fundido com o passado, presente e futuro do lugar em que habitas, e deixes de ser para tornar-se algo.
Pois bem, é assim que se sentem alguns que desejam avançar no tempo, contudo, escorrem pelas beiradas dos acontecimentos sem nunca participar realmente deles."

Soube traduzir perfeitamente o que eu sinto hoje! Obrigada!
Brisa

Vania Oliveira disse...

Fiquei pensando se já me senti escorrendo... acho que não.
A sensação do desequilíbrio, da falta de algo que se não sabe o quê, da ânsia de sair por aí... isso eu tenho constantemente.
Amei o que li :D