sábado, 9 de novembro de 2013

GRÃOS DE CAFÉ NUNCA PEDEM PERDÃO

De manhã cedo, antes de tudo, pensou:
“Eles nunca pedem perdão. São muito estranhos na verdade, e mesmo assim...”
O inverno havia prometido partir, mas voltou em forma de chuva num domingo de antevéspera de primavera.
“Como ele ousava quebrar seu compromisso anual?” – ela se perguntou ofendida, tentando dar a volta nos pensamentos que estavam circulando em sua mente naquela manhã.
Amanhã será segunda, dia de trabalho, provavelmente apagado pelas nuvens que estariam encobrindo o primeiro sol da primavera, que não ia poder surgir com a revolta invernal tardia.
Aliás, quase tudo nesse continente acontecia meio tarde: tratados de paz, rebeldias, filas, ônibus, estações climáticas, refeições, amores... ah! Os amores que tardam e somente afligiam as almas tranquilas com seu atraso injusto!
No entanto, como seria se isso não acontecesse? Ou seja, o que aconteceria se continuasse a ser sempre tarde, sempre domingo, até o domingo da semana que vem, e da outra e da outra, e assim sucessivamente até o final das eras, que já não eram ou não seriam, ou deixariam de ser por uma situação de causa e efeito decorrente das mudanças que estão ocorrendo no espaço, no tempo, na velocidade dos átomos e da luz?
E se o ontem não existisse mais e o depois do amanhã não vier? Se tudo agora se resumisse a um fim de tarde chuvoso, precedido por uma manhã melancólica, que se prolongasse por todos os dias a frente, sem nunca chegar ao fim?
Um ciclo repetindo o mesmo ciclo, dentro de outro ciclo que não se interromperia; ao contrário se reproduziria indefinidamente, mais ou menos como aquele conto, onde alguém diz: “[...]Toda a cidade está metida até as orelhas em sua vigília, sem ponteiros nos relógios, com medo de acordar pela manhã e descobrir que é domingo para sempre1.
 Será que alguém perceberia essa repetição constante e imutável? Será que alguma pessoa conseguiria fugir dela ou tentaria quebrar o ciclo com uma invenção maluca que acabaria por destruir a lei espaço-tempo, tornando possível dobrar a ambos e finalmente proporcionando aos humanos a criação de viagens temporais, embora a teoria da relatividade diga que isso é uma possibilidade impossível?
Então, a vida passaria do tédio da repetição para uma correria entre o futuro, presente, passado, com apenas um aperto num botão de retroagir ou avançar num pequeno controle remoto que todos dariam um jeito de possuir. Quem sabe até se tornasse possível pausar em um momento alegre ou triste, apertar o play e deixar o tempo correr no passo da normalidade, ou viver em ‘slow motion’ para tentar evitar que o peso das horas levasse a vida mais depressa.
 Ou, para aqueles que preferem a segurança da monótona reprodução dos mesmos acontecimentos diariamente, haveria a opção de continuar vivendo eternamente o ciclo dentro do ciclo.
“Repetição: estabilidade cotidiana assegurada é felicidade comprovada”, seria o ‘slogan’ do criador do invento, que, certamente, se tornaria muito rico e viveria uma vida de nababo até ser consumido por sua própria criatividade.
Então, o inverno tinha resolvido dar as caras novamente. E amanhã seria segunda. O trabalho a esperava com a tranquilidade de um cronômetro inquebrantavelmente quebrável.
Enquanto o amanhã não chegava, ela se entregava a essa estagnação meditativa sobre o tempo e o espaço na cozinha fria, bebericando uma xícara de café preto, bem a seu gosto: duas colheres de café e uma de açúcar. Da caneca saia uma fumacinha em espiral, que espalhava o cheiro da bebida pelo recinto, invadia seu nariz e aumentava seu desejo por mais um gole, apenas mais um gole.
Entretanto, como de praxe acontece nesses momentos de fluidez mental, ela acordou a meio nesse instante. E sentiu que parecia uma televisão fora do ar, cheia de estática e chiados. Viu que seu corpo estava tremeluzindo quase na mesma frequência que a estática televisiva. Suas mãos mal conseguiam segurar a caneca de tanto que sumiam e reapareciam. Levantou, com pernas bambas, se dirigiu ao banheiro e, assustada, notou que quase não via seu rosto no espelho de tão desfocado que estava.
E ela se perguntou: “Quantas xícaras de café eu tomei nesta tarde chuvosa? Cinco, seis? Quantos grãos de café equivalem ao número de xícaras que eu bebi? Por que eu sempre esqueço que não posso exagerar?”
Foi quando ela viu uma sombra se alongando pela parede. Quando ela se virou deu de cara com um grão de café preto e luzidio que fugiu do saco que o guardava. Quanto mais ela o olhava, mais ele crescia, até ficar com três metros de altura. De repente ele abriu uma bocarra enorme e a engoliu por inteiro, enquanto ela gritava de terror.
É, algumas pessoas, não tem noção do perigo mental e físico que correm por gostar tanto desta bebida provinda do continente africano. O café tem um efeito estranho sobre algumas pessoas.
O café é esquisito por natureza.

E seus grãos, pretos, luzidios, cheirosos e inebriantes, não importa o que façam, nunca, jamais pedem perdão.

Nota da Escritora

1. In: A autêntica múmia egípcia feita em casa. BRADBURY, Ray. A cidade inteira dorme e outros contos breves. São Paulo: Globo, 2008, p. 70-88.

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