quarta-feira, 11 de julho de 2012

302



“Finalmente nos encontramos! Tu demoraste tanto! Pensei que não te veria tão cedo”, ela disse (ou apenas pensou que disse?) quando viu sua amiga. “Onde estavas? Como tens passado? Tem tanta coisa que eu quero te contar... não sei nem por onde começar. Vou pelo princípio...” Foi interrompida por um suspiro de cansaço de sua visita, que desabava em uma cadeira a sua frente, com a testa suada e uma expressão de tristeza e apreensão em seus olhos.
“O que aconteceu? O que houve contigo?”, quis perguntar, mas não achou as palavras certas. Olhou-a prolongadamente, esperando algum sinal que indicasse que podia lhe perguntar, ou dizer algo. Contudo, os barulhos eletrônicos que ouvia a sua volta, os inúmeros bips, sons de aparelhos que liberavam alguma espécie de gás, os ruídos vindos do exterior, lhe atrapalhavam a concentração, deixando-a confusa, temerosa, espantada ante a situação que presenciava. Havia um misto de temor, pena e ansiedade em seu rosto. Algo que ela não podia decifrar. Suas mãos se encontraram.
“Como estás fria, eu diria gélida. Não vais me dizer o que houve? Não precisas ficar preocupada, eu vou entender...”, ela tentou tranquilizar sua amiga. Mas a expressão em seu rosto não mudou. Ao contrário, lágrimas surgiram em seus olhos, enquanto ela passava a segurar sua mão num aperto desesperado.
“O que tu fizeste? Porque não me disseste o que estava ocorrendo?” – ela perguntou em voz elevada, sem perceber tal fato. Mas não obteve resposta. A expressão continuava a mesma. Alguém de uniforme branco entrou no quarto neste instante e lhe aconselhou a falar mais baixo.
“Se bem que no estado em que ela está, é mais provável que não te escute... Sabe, não há provas cientificas de que alguém assim escute. Portanto, seria um desperdício de energias ficar falando...”
“Não, não preste atenção ao que ela diz. Fala comigo, diga o que houve, porque estás tão aflita...” Novamente não houve resposta. Mas sua amiga continuava a olhá-la com a mesma tristeza estampada na face. “Qual é? Tu nunca acreditaste no ‘senso comum’, fala comigo, me explica o que ocorreu que eu prometo ajudar. Eu sempre te tirei das confusões em que te metias, lembra?”
“Ela parece tão pálida... Será que ela está sentindo alguma dor?” – ela perguntou para a moça de uniforme branco. As duas olharam para ela em silêncio.
“Provavelmente não... – foi a breve resposta da moça “branca”. Ela era branca em todos os sentidos: suas roupas, seus sapatos, suas meias-calça, sua pele... parecia que ela não via a luz solar a muitos séculos.
Ela ouvia a conversa entre as duas com incredulidade pelo fato de ambas parecerem que não percebiam sua presença ali, que não se importavam em ficar falando enquanto ela as escutava trocarem opiniões sobre sua pessoa como se ela estivesse ausente, distante, intocável. Parecia que elas a tornavam uma coisa, um objeto: sem sentimentos, sem sensações, um ser sem ser.
“Escuta, tu já está começando a me irritar. Eu estou aqui, tens que falar comigo e não com essa ai, que nem me conhece, nem a ti. Não sabe das confusões em que estivemos, da nossa amizade, dos nossos encontros e desencontros, das vezes que nos ajudamos ou prejudicamos, enfim, da nossa história. Fala comigo! Não com ela, não com ela”, ela gritou, embora sua boca parecesse muda.
“Nada, nenhum sinal...Ela não percebe mesmo, não é?” – Ela comentou com a moça “alva”. Esta apenas mexeu os ombros, como se a constatação fosse por demais óbvia.
“Daqui a pouco o horário de visitas acaba...” – a moça finalizou saindo do quarto.
“O que tu foi fazer?” – ela interrogou a amiga em voz baixa, próxima a seu ouvido. Sabia que nada adiantaria, mas ainda pensava que...
“Nada. Eu não fiz nada...”, ela tentou argumentar.
“...se jogar na frente de um carro, assim, sem mais nem menos. Tu tinhas dito...”
“Não é verdade!!!”, ela urrou. “A história não é bem essa. Eu tropecei, eu caí. Foi um acidente!”.
“... que estava tudo bem, que tinhas conseguido superar. Mas agora isso! No mínimo tentarias me convencer que foi um acidente, como daquela vez em que os teus pulsos apareceram machucados...”
“Aquilo foi diferente. Eu não tentei dessa vez, eu juro”, ela retrucou desesperada, mesmo que soubesse, bem no fundo de sua consciência que estava novamente tentando enganar a amiga...ou seria a si mesma?
“...e eu acreditei. E agora tu está ai, nessa cama, jogada, ninguém consegue falar contigo, tu não escutas... Aliás, nunca escutaste, mesmo. E eu não sei por que ainda me importo. Ela deve ter razão. Nem sei por que estou falando contigo. Tu já não sentes nada, nem ouves ou vês.” – Ela suspirou resignada, embora triste. Levantou-se.
“Não é verdade, não é verdade!”, ela berrou e esmurrou a cama, embora parecesse imóvel.
“Agora tenho que ir. Amanhã passo aqui de novo.” – ela balançou a cabeça, rindo tristemente. “Com quem estou falando afinal?” – exclamou em voz baixa, mas audível. Deu uma última olhada em sua amiga. Tocou o lençol branco, o braço frágil, a mão macilenta. Saiu porta afora sem dizer adeus.
Enquanto isso, o corpo sobre a cama, rodeado de aparelhos, o corpo que não se mexia, gritava surdamente em desespero: “Não vá, não vá!!! Eu ainda ouço, sinto, vejo...Por favor, fala comigo, fala comigo, fala comigo...”.

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