quarta-feira, 27 de junho de 2012

STALKER



Se eu pudesse eu devoraria um alfabeto inteiro para amainar essa minha fome. São necessárias tantas letras, tantas palavras para descrever o que vai pelo mundo a fora ou interior. Seria preciso até criar algumas novas para melhor definir o que se vê ou o que apenas se vislumbra.
Eu devoraria todos os alfabetos do mundo, misturando todas as palavras existentes ou ainda por virem a existir para poder contar o que eu vi, o que não vi, o que eu quis ou do que abri mão.
Uma a tartaruga segue nadando no canalete, espiando a vida sobre a água na qual navega e que é insuportavelmente poluída quase sempre, ou todos os dias. E eu vou perseguindo o bicho, tentando entender como ele consegue respirar ali, logo ali, naquele pequeno riacho negro, embora aparentemente límpido. Tentando entender como ele continua vivendo, apesar dos resíduos que precisa engolir durante seu nado sincronizado. A tartaruga se sente acuada, perseguida e se pergunta: “O que essa louca quer atrás de mim?”, posso ver a pergunta refletida em seus olhos anfíbicos, que também me observam atentamente.
E o alfabeto sorrateiro que se instalou em minha psique segue marchando catatonicamente em meu cérebro, produzindo palavras com ou sem significado: felicidade, displicentencefalodolormente, solidão, otromoaçaroc, rotina agridoce de cafeteria sem freguês, oasulised...
E as reações adversas que a toda hora me suscita a literalidade das coisas percebidas me fazem estarrecer diante da inércia que me vai tomando. Não. Não sou, ou não estou me dessensibilizando. Apenas endurecendo e isso me assusta. Por que a dormência nunca foi meu ser irrequieto. Mas essa voz em meu cérebro tem que se calar a qualquer preço.
A tartaruga já percorreu bem mais que cem metros: sou uma ‘stalker’ de animais. Essa tortura quebra a paz deles e me concede certa satisfação: tentar capturar a foto que marcaria a existência de um ser vivo num ambiente impróprio para a vida e sua perpetuação. Talvez isso seja esperança?
Volteiam palavras em minha catastrófica mente. A poluição sonora me abala os nervos. Fujo de vozes humanas. Eu queria apenas o barulho de algo que não existe, enquanto isso ele vai compondo estrofes com as palavras do alfabeto corriqueiro. Quero perseguir a antiga ideia de que tudo é possivelmente remediável ou, ao menos, possível de ser suportado.
Navegam peixinhos no aquário poluído do canalete riograndino. Sinto falta das hortênsias que aqui cresciam. Deslizo a mão pela amurada. Espreito mais uma vez a tartaruga, coitada, que ainda se sente assustada de mim. Queria eu ser ela.
E o alfabeto, talvez, será minha salvação ou perdição. Mas nada vai conseguir matar  essa minha fome, pois a música açaima minhas paixões aniquiladas. Não irão sobrar palavras, mesmo oriundas da inventividade, para limpar a degradação que adentrou a cidade de forma tão inesperada.

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