Tinha feito a escolha
mais dolorosa, por isso nunca deveria ter lembrado, mas a música incitou as
memórias a retornarem a sua mente, tão insidiosas quanto eram no começo.
Era preciso, novamente,
arrancá-las a ferro e fogo dos seus neurônios, mesmo que fosse preciso decapitar
sua cabeça, o que, definitivamente, resultaria na morte de seu corpo. Isto seria
muito ruim, com certeza, mas era melhor do que viver o inferno de
reminiscências ressuscitadas extasiando suas noites.
O mal, portanto,
deveria ser cortado pela raiz; arrastado pela lama; apedrejado em praça púbica,
esquartejado e, por fim, queimado até que não restasse sequer uma partícula de
pó.
Então, a ansiedade que tomava
seu corpo, neste momento, encontraria seu fim e voltaria a reinar a paz no
principado de sua mente conturbada. Mente que, sempre soubera, fora idiotizada,
buscando encontrar a realidade em sonhos abstrusos de uma felicidade impossível.
Por isso, sempre ocultara essa característica psíquica com um racionalismo
duro, cortante e infinitamente difícil de ser derrubado nas conversas e debates
mantidos com conhecidos e afins.
Certamente tinha
conseguido evitar sentimentalismos desnecessários. Somente a alguns tinha
permitido que entrevissem o seu lado mais doce e afável. Tão poucas eram essas
pessoas que, quando conseguira despejar do seu peito aquela chaga que lhe
rasgava a pele, arranhava seu interior e explodia seu coração, elas ficaram um
tanto surpresas, mas, como de praxe, aceitaram o fato e seguiram suas vidas
prosaicas sem olharem para trás.
Ninguém lamenta a perda
de um ser que não se mostra humano.
No entanto, para sua
infeliz satisfação, acabou reabrindo o baú das antigas torturas e lá estava:
aquela lembrança, ainda vermelha e pulsante. Sentiu que ela impactava de forma
fulminante seu âmago, como se nunca tivesse sido debelada.
E, pior, vinha acompanhada
de uma ou outra memória mais atual que estava atazanando sua vida presente,
tornando tudo mais irrefreável do que anteriormente havia sido.
Então, o que fazer? Se
os dados tinham sido outra vez lançados, seria possível impedir que eles caíssem
ao chão e mostrassem aqueles seis pontinhos, que determinariam sua derrota para
as lembranças que sufocava ou sua vitória sobre estas, o que repercutiria numa momentânea
e satisfatória infelicidade?
Refletiu nisso tudo com
a mão apoiada no queixo, olhando a chuva que teimava em não se afastar da
cidade nem de sua mente riscada por raios e trovões.
Levantou-se finalmente,
vestiu sua armadura enferrujada, pressionou o elmo sobre sua cabeça e montou o
cavalo baio de sua desgraça. Refreou o animal cabisbaixo por alguns segundos,
enquanto olhava dois ou três anjos que jaziam mortos a sua frente. Lá adiante,
sobre uma colina, seres etéreos protegiam moinhos que outros acreditavam ser
gigantes.
Enfim, deu rédeas ao alazão
que montava. O animal, apesar de sua beleza e força, galopava como se fosse um pangaré.
Hoje, tal qual Dom
Quixote, iria lutar com moinhos.
Tinha certeza que,
desta vez, também perderia. Mas não importava. Desejava apenas que a batalha
terminasse e pudesse voltar outra vez para sua existência despida de ficções.
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