*Imagem obtidagratuitamente no Google Imagens
MRS. A.
FRAGMENTOS
DE UMA PERSONA
Contos
Parte
I
Mrs.
A.: Reflexões
Parte
II
O
Mirabolante Mundo de Mrs. A.
Fragmento
Final:
Álbum
de Fotografia
"Em cada um de nós há um segredo, uma paisagem
interior com planícies invioláveis, vales de silêncio e paraísos secretos.
"
(Saint-Exupéry)
Mrs.
A.
Fragmento
II: “Démodé”
“Démodé”. Ela pensava
nesta palavra já há dias. Sabia exatamente o que significava e, embora tivesse
certeza que lhe tinham dirigido tal termo de forma depreciativa, não poderia
mais tentar mudar a alcunha que lhe fora atirada ao rosto de forma tão
desproposital quanto intencional, grudando em sua pele. Era como a viam. E
ponto.
No entanto, ela
compreendia. Sempre se sentira como uma mulher do século XIX, vivendo no XXI.
Naturalmente, não abriria mão da tecnologia (talvez nem soubesse como viver sem
ela, se voltasse no tempo), do notebook, do celular, dos dvd’s, cd’s e outras
coisas modernas que gostava de possuir e usufruir na era em que existia. E da
independência, principalmente da independência, tão duramente conquistada,
embora algumas vezes tentassem lhe surrupiar a mesma.
Acreditava, todavia,
que mesmo no século XIX, acabaria obtendo essa condição, nem que tivesse que
fazer uma revolução, porque esta era intrinsecamente ligada a sua personalidade
e não aos tempos contemporâneos em que nascera. Ah! Mas esse saudosismo de uma
época que não pudera presenciar! Realmente, talvez, por isso, seu jeito soasse
estranho, dissonante para os seres em redor. Não, não cria que vivera vidas
passadas. Acreditava era na sua inusitada criação, que lhe dera esse gosto
pelas coisas passadas, essa melancolia por aquilo que não vira, mas gostaria de
ter experimentado.
A explicação talvez
estivesse nas suas origens. Era uma mistura de três etnias: açoriana,
castelhana e bugre. Preponderava, entrementes, seu sangue açoriano, pois
nascera numa terra que fora colonizada por estes ilhéus que, dizem os textos
históricos e psicológicos, são muito dados a melancolia e saudosismo dos tempos
idos, assim como de sua velha ilha, quando já não mais residem lá. Alguns de
seus descendentes, mesmo sem nunca terem posto os pés naquele lugar longínquo
sentem idêntica nostalgia. Por isso, chamava a península em que vivia de Ilha
Açoriana, embora seu real nome fosse Rio Grande (a cidade, e não o Estado,
porque havia sempre quem se confundia, até mesmo na terra gaúcha).
Além do fervor do
sangue, calaram fundo em seu pensamento todos os livros, filmes, músicas e
demais temas históricos que lera sobre o informado século. Sempre fora ávida
leitora, desde que se conhecera por gente. Havia puxado este gosto excêntrico
de seu falecido pai, que não falava muito. No entanto, este também achava
esquisito o anseio devotado, descomedido até, de sua terceira filha pelas letras.
Ele a achava meio estranha (talvez meio torta), desatualizada? Ela não saberia
responder. Grande parte do pensamento e sentir de seu pai era extravagante a
ela também, embora entre ambos houvessem mais semelhanças do que imaginara
antes.
Suspirou e levantou-se
da poltrona em que estava tranquila e deliciosamente acomodada. Ah! Aquele
jeito de sentar, de postar as mãos no braço da poltrona, no colo ou segurando o
queixo, tudo, tudo parecia ter saído de um retrato pintado nos tempos passados.
E ela se sentia feliz em ser assim, calidamente desatualizada, detentora de um
modo de ser totalmente diferenciado, com sua postura ereta, sua roupa
praticamente impecável, a pele branca, que ela procurava proteger do sol para
não bronzear, embora nem sempre conseguisse evitar de todo adquirir um pouco de
cor.
Este fato realmente lhe
deixava frustrada, pois depois do verão surgiriam alguns sinalzinhos que
maculariam a alvura da sua epiderme. Ela residia na parte do país cujo clima
era considerado subtropical, contudo, em algumas épocas, fazia um calor quase
equatorial. Não havia como fugir de todo dos efeitos solares sobre sua tez, de
forma que, se não lhe era possível lutar e derrotar completamente o inimigo,
ela ao menos se resignava em esperar o tempo passar para que voltasse a ser o
que era: alva, mas sem ser doentiamente pálida.
Mas, como anteriormente
dito, ela levantou-se da poltrona em que estivera meditando na tal palavra
francesa. “‘Démodé’. Mas o que era isso, afinal, pois se muitas coisas que há
tempos haviam sido esquecidas pelas pessoas estavam ressurgindo – vestes de
outros tempos, músicas da década de 80, o extinto LP, movimentos artísticos,
políticos, culturais e as pessoas os estavam copiando, embora acreditassem que
estavam criavam novos estilos, novas formas de ver o mundo – porque somente ela
haveria de ser ‘démodé?’”, refletiu enquanto encostava-se a janela para
observar um mundo que mudava a toda hora, sem nada modificar. “Quimeras...”.
Suspirou, naquele seu jeito fora de moda, silentemente, sorrindo e passando com
os dedos uma mexa dos seus cabelos lisos por traz da orelha.
“Como eu queria dançar
um Chamamé, ou, melhor, para ser ainda mais ‘démodé’, quem sabe uma valsa?”.
Riu de seu pensar obstinado em relação ao tema. Teria se ofendido tanto assim?
Depois ficou séria.
Faltava-lhe o par perfeito. Ela nunca o tivera, talvez nem viesse a ter. As
danças de que mais gostava exigiam sempre um par, que dançasse bem, quase
alasse durante a melodia, como ela aprendera a fazer, desta feita com sua mãe.
Nenhuma “marca”, como se dizia no seu rincão, poderia dançar sem esse par
onírico. Até nisto era desatualizada, gostava muito dos termos gaudérios do seu
Estado, embora não os usasse muito para não parecer ridícula para alguns.
Encolheu os ombros, indiferente.
E então, assim era sua
pacata vida. Talvez desatualizada, com uma mistura de silêncios e melodias, de
solidão e companhias, queridas ou não. Haveria de ser sempre vista assim,
“démodé”. Com gostos quem sabe estranhos ou inusitados, que a algumas pessoas
atrairiam ou afastariam. Já tinha se acostumado ao fato.
Portanto, continuaria a
observar a vida passar tranquilamente pela sua janela, sonhando com tempos
idos, usufruindo os atrativos do presente e ansiando ternamente o futuro
idílico com que sonhava, mas que não sabia se haveria de se concretizar. Nada
mais da vida pedia, além de saber candidamente esperar.
Fragmento III: Dupla
Personalidade
Eu poderia passar a acreditar que tenho
dupla personalidade. E ai quando eu fizesse alguma idiotice, ou falasse algo
doloroso, eu culparia a outra entidade que existiria em meu interior. Afinal,
se para outros deu certo, porque não funcionaria para mim?
Essa criação comportaria toda a raiva, toda
a frustração, aberração e até as boas emoções e ações que me desatinam e me
levam a sair por aí doando tudo o que tenho. Ela seria o bode expiatório de
bons ou maus atos. Das palavras maldosas ou ternas demais que eu usasse. Tudo,
tudo seria culpa dela.
Enquanto isto, eu andaria pela cidade,
quieta ou falante, soturna ou sorridente. Sempre plácida, serena, responsável.
Dotada de bom senso, de uma energia agradável que acalmasse ou alegrasse na
medida certa quem comigo estivesse. Eu seria a pessoa ideal para papos-cabeça
ou descontraídos. Também seria a boa profissional que nunca falharia com seus
clientes.
Quando algo desse errado e surgisse algum
murmúrio de insatisfação, eu então simplesmente diria: "Não fui eu, não.
Foi minha irmã gêmea! Não se sabe se ela é do bem ou do mal. A culpada é ela, a
‘outra’". Eu falaria com meu olhar mais inocente, com minha voz mais
estupidificada e suave possível, em tom baixo e confidencial. Com ar de
conspiração.
E todos me olhariam de forma assim, meio
suspeitosa, sem saber se seria verdade ou não, se quem falava era eu ou a
‘outra’, sem saber se eu havia enlouquecido ou não. E restariam quietos, a
refletir: "Será? Enfim, sempre há margem para dúvidas e já se ouviu
falarem em casos parecidos".
E aí eu poderia descansar no final. Não
precisaria explicar mais nada. Ninguém perguntaria coisa alguma, pois raramente
alguém ousa questionar a loucura.
Fragmento V: Lesmear
Como uma lesma, a surfar pela parede, ela
ai aos poucos lesmeando o tempo. Não sabia dizer com exatidão quando
desenvolvera esse hábito. Simplesmente, num dia escuro-claro, percebeu que
estava assim, desse jeito, meio parada, meio andando, deixando uma gosma por
onde passava, único rastro de que ali estivera.
Desejou ardentemente que tudo não passasse
de um insólito sonho. Contudo, enquanto olhava para seu tronco, suas mãos, suas
pernas, percebia que seu ser estava andando e parando ao mesmo tempo, assim
como que lesmeando as horas, notando o tempo urgente correndo, enquanto ela
ficava no mesmo lugar.
Percebeu, também, que isso ocorria com mais
frequência quando tinha que se concentrar em algo importante: no trabalho, na
rotina da vida diária, no convívio com os demais seres do planeta em que vivia.
Nestas horas era que mais ansiava voltar a ser a formiga que conhecera outrora.
Entrementes, o corpo lesma não obedecia.
O cérebro, naturalmente, não se conformava
com o ser lesmante em que estava anexado. Revoltava-se com aquela lentidão, com
aquele vagar que acometia o corpo que o transportava. Mas, como nada podia
fazer, calava sua revolta e deixava que a lesma prosseguisse no seu lento
andar.
E ela ia assim pela vida: a lesmear. O
coração quase parado, o corpo amofinado por angústias mil, as esperanças
desiludidas, a saudade reprimida... Lesmeava e nada mais.
No entanto, apesar desse estado quase
imutável, seu pensamento esquisito viajava anos luz e tentava inventar a
fórmula exata para realizar o primeiro transplante de cérebro noticiado. Talvez
assim pudesse encontrar um corpo que não estivesse acometido pelo mau hábito de
lesmear a vida.
Fragmento VI:
Cotidiano
Hoje estou no restaurante de praxe,
observando nada e tudo, todos e ninguém. Estou entediada, saturada, cansada de
tantos planos e de não poder alcançá-los.
Pelo menos não vou ter que aturar, por
enquanto, o casal de namorados já um tanto amadurecidos, que também almoçam
todo dia aqui, de mãos dadas sobre a mesa, como para deixar os solitários com
inveja ou com vergonha, como se esses tivessem algum problema que os impedisse
de ter a mesma exaltada felicidade. Chega a dar nojo, parecem um casal de
adolescentes.
Da mesa que partilham parece escorrer mel,
sonhos, promessas e outras coisas que não é preciso mencionar. Que pelo menos
sejam felizes, enquanto a fase idílica durar. Depois virá o dia a dia, as
cobranças, as dúvidas e incompreensões. Será que irão resistir ou superá-las?
Em meu ceticismo: não sei, não.
Ah! Que se danem! Nem me importo. Só me
importo com a comida a minha frente, a longa tarde de trabalho que ainda terei,
esse tédio e cansaço que me consome, a repetição desses mesmos hábitos: todo
dia, todo santo dia...
Eu sempre vou ao mesmo restaurante, até
porque a comida é boa e tem esse cheirinho de café feito na hora, que meio que
me embriaga e trás uma sensação de coisa conhecida. Chega a ser um consolo
receber esse café. Um toque diferente na minha rotina fria.
Daqui a pouco estarei levantando para ir embora.
O ombro doendo com a velha tendinite. Mesmo assim insisto em continuar escrevendo
a mão. De qualquer forma o PC acaba só piorando a dor. Voltarei para o
trabalho, passarei a tarde maçante, retornarei para casa, sentarei na frente do
computador, da televisão, lerei um livro ou verei um filme da minha coleção.
Sei lá! Será como ontem e antes de ontem e antes de antes de antes.
Depois dormirei. Acordarei às 7h, como
sempre, tomarei banho, me vestirei, fingirei olhar no espelho para verificar se
a roupa escolhida estará em conformidade com o estilo do escritório e rumarei
para o trabalho. Será um novo dia, ensolarado ou nublado, e repetirei todos os
passos de hoje. Assim seguirei vivendo esse cotidiano baço.
Até quando?
Até quando?
Até quando?
Fragmento
VII: Mendigos
Nada mais será narrado. O ponto já foi
pingado no final da frase. Não cabem mais dúvidas diante de uma situação que,
aparentemente, já foi decidida.
E o sol brilha lá fora, mostrando que o
tempo se esvai, embora possa parecer que transcorre lentamente. As formigas
continuam a percorrer suas trilhas, carregando suas folhas, sementes e demais
víveres, numa correria incessante; tão preocupadas com suas tarefas que não
questionam nunca a repetição incansável da mesma labuta.
A mesma ladainha de sempre se espalha ao
redor: os mesmos sussurros, os mesmos berros, as mesmas pessoas impacientes ou
pacientes, educadas ou não, com suas risadas alegres reverberando felicidade ou
tristeza. No mais das vezes, quem sabe, esta última, embora nem todos percebam
ou queiram admitir.
E se junta a tudo isso, o vento zunindo com
aquele gosto de inverno, de folhas secas, areia entrando nos olhos e poças de
chuva sangrando no chão. Talvez por isso surja a pergunta num canto do papel:
será sensato jogar tudo ao léu apenas para caçar um sonho? E será mesmo sonho,
ou apenas teimosia: dura, fria, invejosa?
Os mendigos, apesar de tudo, ainda dormem
na praça, seja porque não há lugares no albergue, seja porque não querem ir
para lá. “É um lugar quente, mas tão frio, tão frio, que a gente sente que vai
ficar louco, moça. A menos que se beba um trago de cachaça. Mas lá não deixam a
gente dar um talagaço no gargalo. E ainda querem que a gente tome banho, senão
não pode ficar.”
Suspiros desalentados.
Enquanto isso, alguém sentado num banco
qualquer da Praça Tamandaré recebe o sol morno no rosto e aconchega mais o
casaco ao corpo meio gelado, como se o calor do pano pudesse penetrar sua alma
e atingir seu cérebro entorpecido, amaciar o órgão gládio, que está batendo com
um compasso a menos desde que previra o desfecho de tudo.
O sol não lhe adentra, contudo. As
ladainhas já não a incomodam há tempos, não lhe importam as formigas ou suas
trilhas corriqueiras. O vento sacode os seus cabelos; não lhe agita e nem lhe
paralisa. Não vê os mendigos e suas agruras.
Esse alguém está dura, fria, transida,
liquefeita. Seu ser escorregou há muito para um lugar que não é de luz, mas
também não é de escuridão. Pode ser cinza, descolorado, lusco-fusco, de
qualquer tom entre a sombra e a claridade.
Entretanto, ela não se preocupa com este
pormenor. Os livros já a aborrecem, suas músicas não lhe trazem emoção, a
companhia de outros não lhe desagrada, no entanto, do mesmo modo não a atrai.
Não está triste e nem alegre.
Este alguém sentada no banco da praça
apenas se questiona: “Será que as pessoas, algum dia, conseguirão entender
porque, às vezes, se deve matar o próprio coração?”
Fragmento IX: Amplexo
Eu estou vivendo o
amplexo reflexo da dor.
E essa chuva que
começou a cair hoje e não quer parar de respingar essa tristeza no chão.
Por isso, embora eu
quisesse conversar com o espelho neste domingo, ele está amuado e eu não
consigo fazê-lo me atender, mesmo batendo com os três toques mágicos
costumeiros no vidro refletor.
Eu estou, portanto,
vivendo no reflexo amplexo da dor.
Amanhã tenho que
trabalhar, apesar deste calor infernal, mas eu não gosto de praia mesmo, nem de
areia. Mas preciso ir trabalhar, mesmo sem nenhuma vontade. Aliás, há tempos
que ando querendo que alguém diga: “Não, não vai trabalhar. Não precisa. Fica
ai, nesta casa tua e não tua. Descansa. Fica aí durante um ano ou dois, somente
lendo, estudando, escrevendo, falando com outras pessoas ou com o espelho
mesmo. Não precisa trabalhar, não. Só faz ser feliz por um tempo”.
Mas não vou ouvir isso
nem hoje, nem amanhã, nem depois, assim como não ouvi no ano passado nem no ano
antes do ano passado, apesar de ter dado indicações. Assim, terei que me
conformar.
Já ri tudo o que podia
hoje, entretanto, de nada adiantou. Agora, estou aqui: sentada languidamente,
cansada de tanto gargalhar (ou seria grasnar?), esgotada antecipadamente por
todos os volumes que amanhã terei que ler, reler e complementar.
Estou só, cansada,
lânguida. Afinal, há um bom tempo não fazia tanto calor mormacento nesta cidade.
Desta feita, não
adianta, apesar de tudo e por tudo e sempre em tudo, sou o amplexo reflexo da
dor. Preciso somente me resignar.
Fragmento
XI: Ancião
Quando o Silêncio bate a minha porta, com
ele não ouso sequer tergiversar: deixo-o entrar, pois talvez seja a hora dobre
de sufocar ilusões.
Então, sento-me no chão, aos pés deste
ancião, que me vai falando, aconselhando, argumentando. Resto ali, com os
braços envolvendo minhas pernas, ouvindo placidamente o que ele me vai contar.
E tento aprender. E tento reter aquilo que nem meu pai soube me dizer.
Réstia de pó lançada ao soalho, olhos
vazios que veem o nada, e ele murmurando, murmurando. Eu somente fico escutando
o Silêncio. Não respiro, não vivo, não choro. Tento entender, mas até a
racionalidade de mim teima em fugir ante a aparição deste doloroso amigo do
tempo. Recosto minha cabeça nos braços, sinto a canseira que me invade,
enquanto o meu velho mestre tenta me convencer que suas palavras são a verdade.
Por fim, ele se vai, deixando a porta
entreaberta para que eu possa vê-lo distanciar-se; para lembrar-me sempre de
qual a razão de sua visita, de seus conselhos, de sua infinita feroz
docilidade.
Sabe ele que seu efeito perdurará em mim
até o fim da tarde e início de outra manhã esperançosamente desesperançada.
Nesta hora vestirei minha fantasia mais bonita, aporei na face minha máscara
craquelada e seguirei pela estrada a sorrir para todos que por mim passarem.
Mas no estúpido espelho de minha sala de
trabalho eu fitarei os olhos veros que me pertencem: vazios, tristes, insones,
perdidos na desilusão do terrificante Silêncio, meu patrão, que sussurrou
verdades ao meu ouvido, mas sem dó nem piedade do meu torto coração partido.
Fragmento
XIII: Circo
E tinha esta ânsia desmedida, mal entendida
e mal versada. Este desejo inconsequente, irrequieto e despojado. Tinha este
sonho tão intenso, tão ardente, tão sufocante que, no mais das vezes, nem
falava.
Então virava equilibrista, procurando
manter os pés firmes no fino fio esticado. Virava trapezista que voava, mesmo
estando parada e sem rede de amparo. Tornava-se malabarista sem coordenação
motora, mas que insistia em tentar agarrar o malabar que já despencara no
picadeiro.
Ainda era aproveitada como contorcionista,
que vivia a dor diária de torcer de todas as formas inimagináveis o próprio
corpo, para escapulir aos desastres, aos perigos e até as alegrias que,
porventura, aparecessem.
Quando sobrava algum tempo, transformava-se
na domadora de feras para cabrestear aqueles sonhos que não iriam se realizar.
E, por fim, virava a aberração do circo dos horrores, que todos os visitantes
desprezavam, chutavam, riam e tinham medo, embora a curiosidade mórbida do
populacho criasse um fascínio que, de se afastarem do ser torto, os impedia.
E para todo esse elenco circense completar
ainda se fazia poeta para tudo isso declarar. Alguns lhe diziam que já nascera
pronta para praticar essa arte e mais nada precisaria fazer. Então agradecia o
elogio, mas dizia que era ainda apenas aprendiz, eis que um ser completo nunca seria.
E era por isso que tinha essa sede, esse
desejo, esse ardor, que não gritava, não chorava, não falava, nem arrostava.
Tinha sede de vida e de possui-la por
inteiro. Era por esta que rugia, que desesperava, em total silêncio.
Fragmento
XIV: Caminho dos Elefantes
Eu percorri o caminho dos elefantes e vi o
quanto era velha, mesmo que meus olhos parecessem juvenis. Percebi o quanto
meus pensamentos eram estranhos; quantas alegrias e dores existiam em minha
estrada e eu não as sabia declarar.
No exílio desta jornada a solidão presente
não me abateu, mas meus pares tornaram minha caminhada mística e não suportaram
a realidade de que assim era preciso fazer. Tentaram convencer-me de que eu não
poderia sobreviver sem ninguém.
Eu
percorri o caminho dos elefantes e mais distante ainda fui voar. Embora os
olhos do mundo presenciassem meu ser, eles não alcançaram algo que não podiam fixar.
E meu corcel fez-se Pégaso e tornou-se intocável em sua veloz cavalgada através
das ventanias.
Os elefantes junto a mim me fizeram
companhia; seus olhos imperturbáveis serenavam minhas emoções naufragadas. Percorri
este caminho, buscando algo que não sabia se veria, contudo, senti que a
jornada não era tardia e algo dela iria resultar. Procurei ao longo do caminho
o que estava perdido, mas eu conseguia entrever a minha frente.
Eu viajei pelo caminho dos elefantes,
solitária, sem abrigo, fustigada por ventos e inundações, vestindo andrajos,
embora minhas vestes refulgissem. A poeira entrava em meus olhos secos, a boca
ardia com a sede causada pelo calor abrasador, o corpo doía por tão longa e
exaustiva viagem, a mente estava presente, o corpo ausente.
A paisagem era inóspita, mas eu ainda
caminhava junto com os velhos e novos elefantes que realizavam a mesma árdua
jornada, para se lembrarem de quem foram, de quem eram e de quem seriam. O
ritual seria sempre o mesmo, embora diverso em todas às vezes. E se repetiria
por infindáveis gerações. E eu continuaria com eles até a estrada a frente
chegar ao fim.
Sim, eu percorri o caminho dos elefantes.
Agora retornarei com a manada pela mesma estrada, comendo poeira novamente,
sofrendo as agruras do deserto, recolhendo restos que por ali ficaram ou se
perderam. O retorno será tão demorado quanto à ida, o resultado poderá ser
diverso ou idêntico ao das outras viagens que já fiz com a mesma velha e nova
manada. Mas eu percorri a estrada. Eu andei e vivi com os elefantes. Para
alguma coisa deverá servir esta caminhada.
Fragmento
XV: Fragmento
Estou sentada, embora em pé. E tenho a
minha frente cinco ou seis livros, um caderno de rascunho, lápis, borracha,
marcador de textos, um notebook, uma televisão ligada, e um cérebro em pleno
funcionamento, que, ao contrário, não possui uma só sensação.
Eu leio Virginia Woolf, mas não seu livro.
Eu falo pelo MSN, enquanto ligo parafusos neurocientíficos. E ainda escrevo,
mesmo sem parecer que o faço. Falo com quem está ausente, ensurdeço para a
música que ressoa no cômodo em que caminho; estou presente na sala, ainda que
não me vejam.
Viajo para o outro lado, mas fico no lugar
que me ordenam. Fujo para a rua, entrementes esteja presa em uma cela. Falo com
a gata deitada no sofá, dormitando tranquilamente, apesar de eu estar em
silêncio continuo. Tomo o café que esfria na mesa, mesmo que minha boca esteja
vazia.
Eu não respiro mais, apesar dos pulmões
inflarem. Meu coração bate, mesmo que esteja parado. Tomo o banho necessário, e
ainda assim a sujeira continua aparecendo. E arranho a pele por causa da
coceira ocasionada pelos ácaros, embora a mesma não esteja ferida, vermelha ou
irritada.
Eu danço com ou sem um par. No entanto, os
movimentos não são percebidos. Eu voo pelo ar, contudo, não tenho asas. Estou
rodeada por pessoas, apesar de estar comumente sozinha. E para finalizar, eu me
afoguei a apenas cinco metros de onde as ondas batem na praia, mesmo sem me
encontrar diante do oceano.
Que será isto que vivi, vivo ou continuarei
a viver? Não sei, apenas vejo na janela o fragmento de uma paisagem que não
existe mais.
Fragmento
XVII: Daquilo que nem sei
E esse desassossego me tomou:
Fernando,
Drummond,
Florbela,
Clarice,
Verlaine,
Cecília,
Quintana, nem eles acalmam isso em mim.
Entro novamente na livraria. Procuro o barulho confuso de conversas fiadas ou
eruditas. E acabo encontrando aquele rosto que não conhecia, mas buscava meus
olhos como se houvesse me visto inúmeras vezes, antes desta primeira.
“Tu estás em mim ou eu estou em ti?”
Mas teus olhos tomaram os meus e mesmo ao
desviá-los, não pude evitar uma última visão. E foi como se houvéssemos, nesse
ínfimo instante, nos reconhecido. Um meio sorriso surgiu. Depois nada mais.
E quis eu revelar. Falei altiva e
tristemente: “Eu somente sou feliz com meus livros”, enquanto os seres da
livraria ficam a me olhar admirados de tal arroubo. “Será triste, louca ou
má?”, senti que eles pensavam sem nada dizer. Voltaram seus rostos para o lado,
ergueram suas xícaras e retomaram as conversas que minha frase insólita
interrompeu. O barulho retornou a cafeteria e a rotina prosseguiu.
Por fim, eu me sento envergonhada,
emudecida, pensando novamente: “Eu somente sou feliz com meus livros. O que
mais posso fazer?” E, ao olhar adiante, me vi em pé a um canto, observando a
cena por mim levada a efeito, com cara de espanto e incredulidade,
desconhecendo-me no espelho que me refletia, eis que nada do que via aconteceu.
No entanto, aquela frase vibrava ainda no ar denso e intelectualizado da
livraria.
Meu desassossego permaneceu. Eu tentei,
mais uma vez, encontrar teus olhos, recapturar aquela sensação tão instigante
quanto intrigante. Mas não me fitaste mais, já não estavas mais ali, te
afastaras para outras eras nos livros sobre tua mesa.
Fernando,
Drummond,
Florbela,
Clarice,
Verlaine,
Cecília,
Quintana: todos ficam a olhar-me de suas
folhas, vendo minha inquietação aumentando. E restaram desalentados, tão
tristes, escorrendo das páginas dos livros por mim escolhidos, por nada poderem
fazer por mim ou aquela do espelho. No entanto, eles bem sabiam: tal como eu,
eram felizes somente com seus livros.
Fragmento
XVIII: Chuviscante
"Boa noite", diz a
chuva batendo em minha porta. "Deixa-me entrar, imploro, eis que a solidão
da rua está a me atormentar."
Mas não sei como responder a esse pedido, pois ele bem
pode ser sincero ou fingido. A chuva pode apenas estar querendo molhar minha
alma, e não buscando minha companhia, para depois me abandonar toda encharcada,
sem possibilidade de me livrar da umidade e enraivecida como sempre me ocorre
nestes momentos.
Então, me torno uma espécie de tua voz emitida pela boca
de outro, com um idioma estranho, mas compreensível em parte. E sinto esse
desejo de sair pelas ruas escuras, desertas e liquefeitas de Rio Grande, mesmo
que acabe totalmente afetada por esta chuva estranha.
Sinto um desejo insólito de visitar certos lugares da
cidade em dias de chuva triste a despencar do céu. Andar e visitar; visitar e
andar. Tocar alguns muros, monumentos, árvores. Deitar num dos bancos de uma
das praças da cidade, enquanto o chuvisco vai sendo absorvido pela minha roupa
e melando meu cabelo já naturalmente escorrido.
Rio Grande é tão triste quando chove! E eu fico triste
junto. Aliás, eu sempre sou deste jeito: meio chuviscante. Assim, nada de
esquisito em dizer que a chuva riograndina me entristece, nem em contar que ela
pede minha companhia. Afinal, somos duas personagens solitárias numa cidade
pequena-grande, velha-nova; mutávelmente imutável.
E eu me transformo na voz desses pingos doentios e
reverberantes, pois quando chove aqui os trovões e raios explodem em todas as
direções e causam um terror-pânico em mim e nos habitantes da cidade. A energia
eletrica, como sempre, sofre uma brusca queda e quase queima todos os
eletrodométicos e eletroeletrônicos das casas riograndinas.
Aí fico ansiosa, presa entre quatro paredes como um bicho
encurralado; um tanto amedrontada, mas terrivelmente desejosa de sair para a
rua, abrir os braços e esperar, esperar que algo ocorra, que algo me atinja e
me faça... Desejando ver os raios riscando o cinza-chumbo do céu, de gritar no
mesmo diapasão dos trovões e de libertar algo que nem entendo o que é ou porque
sinto existir entre eu a chuva que cai de forma estranhamente diferente em Rio
Grande.
Fragmento XIX: O
Segredo
Ele pesa assim, como um a noite escura a
anuviar os olhos. E cobre o ser como uma pele ou fuligem que não sai mesmo com
escovadelas firmes de uma escova dura, durante o banho quente que quase arranca
a epiderme.
A pessoa caminha durante o dia ensolarado,
sorri, conversa com colegas e amigos. Toma um café forte na lanchonete, almoça,
trabalha, participa de reuniões onde se torna conhecida por sua sensatez e tino
para tomar decisões rápidas, prementes ou corriqueiras.
Mas “ele” está lá! Presente, oculto,
placidamente empoleirado sobre um ou ambos os ombros, sussurrando que não se
afastará, não libertará aquele que o sustém e mantém em cativeiro. O ser olha
para os lados para saber se outros ouviram as frases temerárias ou perceberam
seu crime escondido. Alívio por tudo parecer normal, contudo, apenas por breves
segundos ou horas.
E durante o dia, o segredo vai se
enroscando no pescoço, na cabeça, no tronco e pernas da pessoa que o contém.
Vai pressionando como uma jiboia ou uma mola; confinando membros, movimentos e
pensamentos do ser que tenta esquecer, fingir que nada está ocorrendo, que tudo
já acabou, mas que não logra fugir ao cárcere da prisão do que não pode dizer.
A pobre criatura olha para a pessoa ao
lado, aquela que parece que vai entender, suportar, ou, ao menos, ouvir calada
o que ocorre no interior do confidente. E chega a dizer o nome do possível
ouvinte e começar a frase. Mas a expectativa no rosto do outro lhe acabrunha,
envergonha, aflige e, no último e derradeiro segundo, finge esquecer o que iria
dizer ou inventa algo diferente. Um século passou para ela, mas seu
interlocutor nem percebeu.
Anoitece, o peso nos ombros faz doer a
nuca, os braços, o coração. A pessoa retorna para sua casa, lê, assiste TV,
joga games, ouve música ou escreve, enquanto a sombra lhe persegue os
movimentos, intoxica sua mente.
Resolve dormir. Sonha com campos coloridos
ou celas escuras. Por fim, o segredo salta sobre seu corpo e o sufoca até a
morte. Sinal de alerta, seu cérebro desperta exausto, assustado: instinto de
sobrevivência.
O ser se enrosca em posição fetal e chora
silenciosamente, com a cabeça escondida sob o cobertor, para que ninguém o
ouça. O lençol restou molhado de sal e suor e os dedos mordidos. Somente a
paranoia lhe abrigou.
Fragmento XXII: Fotogenia
E como pode ser que existam essas pessoas, algumas
bonitas, outras nem tanto (na opinião prosaica de muitos), mas que, ao posar
para uma fotografia, espelham na mesma uma beleza tão vasta, tão intensa, tão
extasiante quanto o ser mais belo que já foi visto?
Será o sorriso misterioso? Será a profundidade do olhar?
A postura ou o aspecto de intensa meditação? Será a alegria apenas esboçada ou
a recôndita melancolia? Será a profundidade dos sentimentos ocultos que, por um
milésimo de segundo, vem à tona mesmo contra a vontade da pessoa que é
fotografada? Será o conjunto: a pessoa, o ambiente, o clima, enfim, tudo que é
abarcado pela película?
Não sei bem explicar ou como responder. Somente sei que
algo existe que torna a imagem capturada e seu modelo tão belos que chegam a
nos causar duas invejas: uma, um pouco má (tenho que ser sincera nesse
momento), eis que nos questionamos “Porque, porque eu não consigo ficar do
mesmo jeito nas minhas fotos!”, nos levando a desejar queimar todas as
fotografias para as quais já posamos.
A outra inveja é boa, pois passamos a reconhecer a beleza
existente naquele ser que vemos diariamente e agora se descortina sob outro
prisma diante de nossos olhos. Aí, se ele é nosso amigo, parente ou par
romântico, pensamos orgulhosa e egoistamente: “Eu faço parte da vida deste ser,
desta criatura maravilhosamente bela, embora outros possam dizer que não”.
Então, ficamos a olhar essa fotografia, em estado de
inanimação total ou, ao menos, trocando-a de ângulo para encontrar a explicação
para o fenômeno que nos assalta ao observá-la. Mas a lógica não fornece
esclarecimento sólido para esse sentimento estranhamente contundente e doce.
Eu o sinto como um susto, uma espécie de descobrimento
inusitado, que me espanta, que me imobiliza, mas não me atrofia. E fico apenas
mirando o quadrado que tenho nas mãos ou na tela, impressionada com o fato de
não ter notado antes o que era tão óbvio: que aquela pessoa bonita, mas comum,
ou às vezes nem tão bonita, mas incomum, é detentora de uma fotogenia, de uma
característica, de um conjunto de “não sei o que” que a torna diferente das
demais, a torna bela somente pelo fato de ser “ela”, de ter uma personalidade
única, que, por um acaso, uma fotografia conseguiu captar tão intensa e
rapidamente que revelou o segredo de sua alma, anteriormente despercebido ou
ignorado por mim, por todos.
É um segredo desvendado a meio, restando toda a outra
metade para descobrir se olharmos atentamente para o modelo fotografado, mas ao
vivo. Ou não.
Talvez nunca venhamos a descobrir todos os mistérios
destes seres fotogênicos. E por isso (acho que essa seja a resposta) a
fotografia tenha capturado essa beleza tão impactante, para que passemos a
olhar de verdade os seres que nos rodeiam.
Fragmento XIX: Narcolepsia
Ela precisava desesperadamente de uma
janela, ou um buraco na parede, por onde pudesse observar um pouco a vida lá
fora. Não precisava ser uma janela muito grande ou suntuosa. Poderia ser
pequena, tipo 1m x 1m, ou um basculante. Até mesmo um vitrô, que não abrisse
totalmente, serviria.
Acreditava que se tivesse esse pedacinho de
parede aberta para o lado de fora da casa em que vivia, com certeza, iria
sentir-se melhor. Poderia observar um pequeníssimo quadrado de céu azul ou
nublado, de sol ou de chuva; sentir um pouco da brisa, tão comum em sua cidade,
a roçar, de leve, seu rosto pálido.
Haveria de poder escutar os raros pássaros,
que ainda existiam na localidade, cantando; ou aquele grilo, mesmo aquele grilo
chato com seu cri cri noturno. Ainda poderia deixar sua gata sair por ali, em
vez de ter que abrir-lhe completamente a porta da sua residência, o que lhe
causava certo terror-pânico.
E o vão na parede dupla de tijolos ainda
lhe daria um ponto de observação, acanhado, mas discreto, em relação aos poucos
transeuntes que passavam naquela estreita rua. Assim, ela teria um pouco de
agitação em seu insípido cotidiano.
Aí talvez pudesse ver o velhinho que morava
ao lado, caminhando seus passinhos lentos de idoso, despreocupado com o tempo
que voava, preocupado com o pouco que lhe restava. Ou não; talvez ele já
estivesse conformado, afinal tinha mais de oitenta anos e não era nenhum infeliz.
Quem sabe conseguisse ver a felicidade do
jovem casal de namorados, que tinha como ponto de encontro a pracinha
construída no antigo pátio baldio que havia na esquina e onde ela brincara
quando criança. Talvez pudesse observar a jovialidade e o encanto do primeiro
amor e lembrar... Não, isso preferia não lembrar, embora ainda desejasse ver o
jovem casal.
Através dessa janela, mesmo que quase não
abrisse, ela ainda poderia ver o carteiro passando, entregando a
correspondência da vizinhança, pois ela bem sabia que seus vizinhos, além das
contas, recebiam cartas, cartões, pacotes de presentes, enviados de outros
lugares por parentes e amigos próximos ou distantes. E quando o carteiro
passasse, embora nada houvesse para si, além de faturas, quem sabe, como os antigos
carteiros faziam, ele parasse para trocar breves palavras com ela, a moradora
do único casarão velho e sem janelas do quarteirão.
“Se houvesse essa janela...”, sonhava. Ah!
Então ela viveria; todos os dias trariam alguma novidade, algum acontecimento
para fornecer a sua mente cômicas ou profundas reflexões. E ela voltaria a ser
feliz, daquela felicidade pura de criança que sentia quando... Quando o que?
Quando era mais nova? Mas se nem velha era
ela. Quando era mais falante? Mas como, se pouco ou nada ela havia falado em
toda sua vida, pelo menos, não algo realmente importante ou profundo? Quando as
portas do casarão estavam sempre abertas e todos que desejassem podiam adentrar
seu lar e dizer se estavam alegres ou tristes, exclamar sua dor ou prazer e até
brigar com ela por causa de sua excentricidade? E ela somente sorria dos puxões
de orelha que levava, ou ria com quem ria, chorava com quem chorava e
acalentava os corações entristecidos ou solitários.
No entanto, agora que as portas estavam
fechadas sem que ela soubesse como haviam sido lacradas tão hermeticamente, ela
só sonhava com um pequeno quadrado para ver um pedacinho de céu, observar
discretamente quem passasse e ouvir um ou outro som que na rua fosse
sussurrado.
Ela sonhava, somente sonhava; sem saber se
ainda estava acordada ou se estava completamente dominada pela narcolepsia.
Fragmento XXIV: Storyboard
A vida é esquisita. Por vezes parece um
estranho grafite ou o esboço de uma história em quadrinhos, do tipo que ele
estava acostumado a rascunhar para seus projetos de trabalho, para seus
clientes, para passar o tempo ocioso.
Hoje havia acordado com a garganta seca, o
corpo moído por uma surra que levara em seus sonhos e pesadelos. Era o
anti-herói que tentava escapar da turba ensandecida, após mais um ato de
heroísmo fracassado.
Levantou da cama, estropiado, mal comeu e
bebeu e já passou a tentar rascunhar alguma coisa do trabalho que tinha para
sobreviver. Mas, neste dia, nada estava fluindo como ele queria. E o telefone
não parava de tocar... clientes fazendo solicitações, um pedido para que ele
analisasse uma logomarca de uma empresa e desse o mais breve possível o
esperado retorno, respostas a e-mails, etc., etc., etc. E o storyboard da HQ
(que poderia ser da sua vida ou não) lá, em cima da mesa a esperar para ser
finalizado.
Depois, mais uma reclamação da sua família e
nova justificativa sobre... sobre o que ele nem sabia.. Não sabia mais o que
dizer, afinal fora encontrado num momento de ócio, a navegar pela internet, sem
saber o que estava procurando, apenas vagava por ali, entediado. Contudo, fora
surpreendido e ai...
Era incrível a capacidade que ele tinha de se
sentir culpado por tudo, diziam depois de algum tempo, e ainda achavam estranho
ver certa vermelhidão em seus olhos, coisa que não durava muito, pois se
alguma água ainda escorria deles era
muito pouca e breve. Já não podia dar-se ao luxo de lagrimejar com a mesma
frequência de antes. Seus olhos estavam se tornando um deserto. Era preciso,
portanto, poupar os poços que ainda existiam para lubrificar os globos
oculares. Caso contrário, acreditava, acabaria ficando cego.
E isso lhe despertou a atenção para um objeto
pequeno, que estava do outro lado da sala, sobre um móvel qualquer,
displicentemente jogado. Precisava encontrar-se com um amigo com urgência.
Pedir que se desfizesse daquele objeto, pois não conseguiria jogá-lo fora, não
teria coragem, assim como não tivera até agora. E isso lhe doía. Doía por causa
das lembranças que evocava. Doía porque teria que se livrar dele e delas, sob
pena de morrer de vez.
Por fim, como todas essas coisas lhe pesavam
muito e lhe deixavam assim meio imobilizado, resolveu sair para a rua, passear
em sua cidade. Pegou sua máquina fotográfica e saiu caminhando pelo dia levemente
ensolarado,
até que chegou a frente de uma antiga casa.
Era uma de suas preferidas, embora estivesse
meio abandonada; paredes sujas, portas e janelas fechadas. Algumas placas de
“Vende-se” pregadas no muro encardido. E ele pensou em como era estranho o
surgimento de tantas placas de “Vende-se” nos imóveis da cidade, justamente
agora que ela voltava a expandir-se.
Pena que ele ainda não podia comprar aquela,
ou qualquer das outras casas bonitas e antigas que apreciava tanto...
Então, contentou-se em bater algumas fotos
dessa que admirava. Fotografias que captavam os detalhes arquitetônicos dela, a
sujeira das paredes, as tristes placas de “Vende-se”, os grafites coloridos e
surreais que foram pintados no muro, com ou sem autorização do proprietário. E
sentiu-se feliz de poder guardar essas recordações da casa, antes que ela fosse
vendida e sua personalidade perdida quando seus novos donos a colonizassem, ou
resolvessem destruí-la (e isso lhe doía como se o imóvel fosse sua própria
carne) para construir um edifício mais arrojado.
Depois... depois pensou um pouco e resolveu
fazer algo diferente. Ajustou o sistema de sua máquina digital para fotografar
com efeito de rascunho e tirou, outra vez, fotos da casa e do muro grafitado,
com os mesmos ângulos das demais.
Foi quando teve a ideia de escrever estas
linhas: um storyboard que esboçava a visão de anti-herói de sua própria vida.
Fragmento XXV: Espelho
Hei, tu ai? É, tu
mesma, que estás aí, escondida neste espelho, como se fosses uma Alice qualquer
da vida. Quero conversar contigo. Não, não adianta tentar fugir, o papo agora é
entre nós duas.
Quantas vezes eu já te
falei que não adianta tentares explicar o que ninguém entende nem quer
entender? Não adianta virar o rosto para a escuridão. É a mais pura verdade. As
pessoas não gostam de explicações, de sugestões, não gostam de saber de seus
defeitos, e dos teus muito menos. Elas não querem saber do teu inferno
particular, da tua decepção, da tua alegria, da tua excêntrica loucura. Elas só
desejam que tu sorria. Sim! É muito simples, simplório até, diria. Se tu sorrir
sempre e a toda hora, poderão até dizer que tu és esquisita, mas vão ficar mais
felizes e achar que o mundo é perfeito, a vida maravilhosa e que tudo, enfim,
vai ficar bem.
Elas não querem ser
prevenidas, não querem saber das preocupações que tens com elas, das tuas
mazelas, das tuas agruras ou do teu trabalho. Senão, elas começam a te vigiar,
achar que estás pra te matar, começam a te mentir sobre dinheiro, tentar te
acarinhar e fingir que vão estar lá, naquele lado escuro como breu que, na
verdade, não querem conhecer... o outro lado do espelho. Não, elas não querem
isso.
Eu já te recordei
diversas vezes que existe um lugar certo na ordem natural do universo que tu
conheces e que é o que te compete: ficar sempre onde estás, ao alcance da mão
de quem precisar e sem reclamar. Aconselhar sensatamente os que te buscam para
tal e deixar o rio inquieto da tua vida encontrar-se com o lago tranqüilo que
almejam que sejas. Tu já o sabias, tinhas até te conformado, lembra? Mas
ousaste sair por aí, dizendo que estarias me acalentando, decidiste rabiscar
umas linhas e mostrar para quem quisesse ver. Mas eu te avisei que não ia
ocorrer o que esperavas. Que o parco equilíbrio do teu mundo seria abalado, que
falarias palavras ao contrário e acabariam dizendo que tua imaginação é por
demais imaginativa para se conviver.
Tua teimosia acabou
assim: tu tendo que te esconder ai no espelho e eu tendo que explicar que a
culpa não era minha, mas da cara “amiga excêntrica” que tenho e ninguém vê. Mas
nem isso serviu dessa vez. Foi-se de roldão minha respeitabilidade. Perdi o
direito de ter razão, de protestar, de passear. Adeus naturalidade! Adeus, dias
de sol! “Adieu, messieurs, adieu, mademoisseles”.
E para piorar acabaste
com minhas noites de sono. Estou insone há quase um mês. Grave problema, porque
ai fico escrevendo (aliás, tu conduzes minha mão, minha mente, minha intenção)
falando de pássaros que partiram, saudades que ficaram, tristezas que sangraram
e mancham o branco do papel. O que causa estranheza em alguém que parecia tão
predisposta a alegria infantil e a ficar grudada nos amigos (os reais, e que
aqui não estão).
Não, não. O pior pecado
não é cometer erros, não é repeti-los, pedir perdão por algo que não se fez,
nem implorar por amor a quem partiu e te desprezou. O maior erro é ser privada
de lucidez. Ninguém gosta de loucura. Alguma excentricidade é possível e até
necessária, para divertir os amigos e afins. Mas loucura!
“Jamais, nem pensar! Na
minha família não. Imagina. Ela só é um pouco estranha. Fica muito tempo em
silêncio ou fala demais, ou lê cinco livros ao mesmo tempo. Ou trabalha, escuta
música, joga games no PC e rascunha uma poesia tudo na mesma hora. É cansativo.
Mas é somente isso, porque ela é um pouco excêntrica, sabe?”
Loucura é tabu. É medo
do Escuro. O outro lado do espelho que ninguém quer ver, entender ou
compartilhar. Por mais que expliques, que previnas, que peças perdão, não
existe redenção para tal mal. Os ‘sãos’ irão partir se souberem que tu és dada
a acessos de devaneio, de ilusão, de criação, ainda mais a altas horas da
noite.
Talvez seja por isso
que das histórias infantis Alice no País das Maravilhas seja o menos aclamado.
Quem vai querer saber de uma menina perdida num mundo estranho, que acaba
falando coisas ao contrário, ou crescendo e encolhendo toda hora; conversando
com bichos, chapeleiros malucos, ouvindo conselhos de uma lagarta e, para
piorar, acaba parando justamente onde não deveria: do outro lado do espelho,
onde tudo é o contrário, ou o contrário do contrário natural.
Por isso, te digo: fica
aí no espelho, de molho, por pelo menos um ano. Assim, eu poderei readquirir
minha respeitabilidade, a confiança abalada e duas ou três amizades perdidas.
Quem sabe até eu salve o que restou da minha simples vida.
E para findar essa
conversar, assina esse contrato aí em três vias, que serão lavradas em
cartório, com assinatura de testemunhas e imputação de multa por qualquer
futuro descumprimento da tua parte. Afinal, posso ter uma amiga excêntrica, mas
o seguro morreu de velho e advogado bom é aquele que prefere um mau acordo a um
bom litígio. Ponto final.
PARTE II
O MIRABOLANTE MUNDO DE MRS. A
Fragmento IV: O Relógio
Certa vez um jovem
senhor adquiriu um relógio, eis que em virtude de sua importância e dos vários
compromissos que possuía, precisava sempre ter em mente a hora exata para
evitar atrasos inconvenientes.
Assim, ele entrou em
uma velha joalheria e observou todos os relógios que ali se encontravam. Gostou
de uns, desgostou de outros, odiou os demais. Mas, após uma demora não tão
prolongada quanto pode parecer, o jovem encontrou dois de que gostara bastante.
Um relógio de pulso e um para por em cima de alguma mesa ou outro móvel que
houvesse em sua casa.
O vendedor, desejoso de
fazer um bom negócio e, principalmente, desvencilhar-se de um despertador um
tanto velho e estranho, propagandeava as virtudes dos dois objetos, enfatizando
que seria útil ao comprador possuir a ambos. No entanto, o jovem, embora de
posses remediadas, achava um desperdício comprar a dupla apresentada. Além do
que, o relógio despertador lhe causava uma impressão que ele não sabia bem como
definir. Parecia um objeto meio curioso, que lhe provocou imediata simpatia,
afeição até.
- Ele funciona bem?
Parece meio esquisito. – falou ao vendedor.
- Sim, é um pouco
diferente dos demais. Mas é um bom relógio. Às vezes adianta-se um pouco nas
horas, outras vezes atrasa-se, mas é só dar corda e ele funcionará a contento.
Vai lhe deixar satisfeito. Com certeza.
O jovem olhou para o
objeto meio de soslaio, cerrou por uns segundos os olhos, mudou de posição
segurando o queixo com uma das mãos, refletiu, e por fim sentenciou:
- É, gostei. Vou levar
assim mesmo. Condiz mais comigo este relógio.
O vendedor sorriu.
- Não vais te
arrepender, meu jovem. – disse, enquanto preparava um embrulho e sorria
intimamente. “Enfim, me livrei! No entanto, era um bom relógio. Pena ser meio
torto.”
O jovem foi para casa
feliz. Agora não iria mais se atrasar para seus compromissos inadiáveis, suas
festas alegres, suas noites boêmias ou de negócios. Contente consigo chegou ao
lar, desembrulhou o relógio, deu corda, como recomendado, e colocou-o sobre a
mesa da sala, sentando-se a observar por uns minutos o trabalho persistente do
relógio.
Então percebeu que o
mesmo não fazia um tique-taque normal como os demais irmãos seus que contavam o
tempo. Seu novo medidor fazia tic-tic-tac-toc. O rapaz estranhou, mas como
havia simpatizado com a aquisição acabou se conformando. Era até melhor assim,
pois o jovem, às vezes, se enfadava com coisas convencionais demais.
Esse fato, por sua vez,
lhe fez notar algo importante que ele não distinguiu plenamente na loja. Seu
relógio era assim, meio torto, de uma tortesa estranha, pois suas engrenagens
estavam meio expostas, mas não totalmente desprotegidas, o que poderia
ocasionar algum mau funcionamento mais rapidamente. Entretanto, isso o fez
gostar mais ainda de sua aquisição, eis que lhe despertava um cuidado maior.
Assim, embora o tic-tic-tac-toc
do medidor fosse esquisito e seu motor meio delicado, a máquina trabalhava com
regularidade. Também fora agraciada por seu fabricante com uma forma delicada e
não totalmente desprovida de beleza. As próprias molas e engrenagens que
compunham o motor do objeto eram em si mesmas um belo exemplo da arte do
relojoeiro.
Passado algum tempo, o
jovem descobriu outro detalhe de seu agora amado relógio: ele atrasava ou
adiantava mais seguidamente as horas do que o vendedor havia dito. Isso, a princípio,
lhe deixou meio aborrecido, pois lhe ocasionou um adiantamento em certo
compromisso que ele queria procrastinar e um atraso em outro que ele ansiava
antecipar.
No entanto, após
meditar um pouco, ele chegou a uma solução perfeita para o ínfimo transtorno
que tal defeito ou qualidade do despertador lhe trazia: ele passou a adiantar,
quando percebia que o relógio estava atrasado, ou a adiar um pouco sua saída de
casa, ou vice-versa . Acabou por se acostumar e gostar dessa característica do
relógio.
Contudo, como todo
idílio, justamente por ser idílico, acaba por findar, aconteceu algo que fez
todo o carinho do jovem pelo seu torto relógio arrefecer.
Ele descobriu, por
acaso, que o pêndulo do instrumento era totalmente recurvado, embora não
ocasionasse nenhum problema no funcionamento do relógio. E não apenas isto.
Neste mesmo dia, o medidor emudeceu (não se sabe se por que o jovem, em seu
desespero em relação ao pêndulo, esquecera de dar a corda necessária para a
máquina funcionar, ou porque o relógio decidira apenas meditar em sua torta
vida).
O fato é que o
despertador não soou o seu tic-tic-tac-toc costumeiro e ocasionou ao seu dono
graves transtornos em sua vida de boêmio, de rapaz responsável e festeiro. Isso
foi como jogar água gelada numa caldeira, como soar a trombeta derradeira. E o
amor, de repente, se fez desamor, restando apenas umas palavras duras, que
foram assim expelidas:
- Que me fizeste? Tu me
mataste. A culpa é tua, o defeito é teu. Já não te quero.
Talvez tenham sido
palavras ditas ao vento, num momento de furor e decepção, pois quando deu as
costas ao relógio, já pensando em outro adquirir, o rapaz pensou: “Mas ele me
tem sido tão fiel...”. Mesmo assim deixou a casa por horas seguidas.
No entanto, o relógio,
que já era estranho, produzia um tic-tic-tac-toc diferente, tinha um pêndulo
recurvado e, uma vez, uma única vez provavelmente tenha decidido meditar em sua
simples vida, sentiu que seu interior foi ao meio partido. Perdera o afeto de
seu mestre. Perdera o sentido de sua vida. Sentiu o quanto era inadequado, o
quão era imperfeito. Temeu, também, por sua existência. Pensou que, quando o
jovem voltasse, com um substituto mais novo e menos torto, já não teria aquele
por que mantê-lo e o jogaria no lixo. Meditou, principalmente, na decepção que
causara ao dono que tanto afeto lhe votara.
E foi isto que mais lhe
doeu. “Sim, a culpa é minha... sim, o defeito é meu. Dele nada posso reclamar”,
refletiu. “Me resta apenas agir como um velho e bom relógio agiria nessa
situação. Sair de cena. Salvar a dignidade que me resta e do fardo livrar o
mestre.”
Com dificuldades,
conseguiu descer da mesa. Por coincidência, encontrou uma porta semiaberta,
deslizou para a escuridão e desapareceu nela, sabendo que o caminho o levaria
por lugares mais estranhos que ele, que talvez sua máquina parasse
completamente de trabalhar por falta de alguém que lhe desse corda, que toparia
com seres bondosos ou maldosos. Mas ele com isso não se importava. Importante
era seu mestre, e o que ele (simples relógio torto) ainda tinha de qualidades.
Seu futuro era incerto. Contudo, a incerteza do desafeto... Ah! Essa não queria
jamais provar.
Enquanto isso, o jovem
retornava a casa. Abria a porta. Sua fúria tempestuosa já amainara. Percebeu
que tudo ocorrera principalmente porque ele se perdera nas linhas de sua
própria arrogância desmedida. Sempre fora assim, meio de supetão, de dizer
coisas e se arrepender depois. Entretanto, ainda assim, no mais das vezes,
esquecia de pedir perdão.
Não comprara um novo
relógio. O velho ainda lhe era caro e talvez ainda funcionasse. Olhou para a
mesa, mas a máquina ali não estava. Olhou embaixo da mesma e também não o
encontrou.
- Estranho. – falou em
voz alta. – Eu daqui não o tirei.
Seguiu até o próximo
cômodo. Anteviu a porta semiaberta, ou quase fechada. E ficou a pensar: “Será
que alguém o roubou? Mas era tão torto e não estava funcionando.” Abriu a porta
e observou a noite sem lua, escura como breu.
“Era um relógio torto.
Será que criou pernas e escapou?”. Depois riu. Criancice esses pensamentos
absurdos. Foi fechando a porta devagar, melancólico por perder assim um relógio
tão invulgar, mas ciente que outro poderia comprar, talvez até melhor.
Enquanto isso, na noite
o medidor esquisito sumiu. Não olhou para trás, nem sabe se chorou, apenas se
foi. Capengando por causa de sua tortesa e por carregar, em seu frágil
invólucro, a alegria de libertar a quem dele já não mais precisava, mesmo tendo
de suportar o fardo triste de sonhos mortos.
Fragmento VIII: Chapeuzinho Vermelho?
A menina não era tão ingênua quanto
imaginavam, nem tão frágil, apesar de ser pequenina. Além disso, ela bem sabia
que na floresta existia um lobo mal, mas até que bonito. Contudo, ela não tinha
medo dele, nunca tivera, nem quando o encontrara pela primeira vez. Ela não
tinha medo de nada, ou quase nada. Talvez, talvez um pouquinho de si mesma, mas
também não estava nem aí.
Então, quando sua mãe pediu que ela levasse
a cesta, com produtos estranhos dentro, para sua avó, bem no meio da floresta,
ela se questionou se sua progenitora seria uma pessoa normal, afinal sabia da
existência do lobo devorador de incautos inocentes. No entanto, deu de ombros e
obedeceu como sempre. A cândida mãe ainda lhe orientou a não falar com
estranhos e, muito menos, como o Lobo. Chapeuzinho revirou os olhos e pensou:
“Se ela soubesse com quantos estranhos já falei! Mas é sempre ela que me manda
pro meio da floresta escura”.
E a menina lá se foi, mata adentro,
carregando sua cesta e sem nada cantarolar, até porque achava a música que
aprendera muito chata. Quando chegou numa bifurcação da estrada, eis que salta
agilmente de uma moita um belo lobo branco, prontinho para atacar a donzela.
Ele foi logo dizendo:
- É hoje, menininha, que vou te devorar! –
Ele estava a um passo do pequeno ser impassível a sua frente.
Ela suspirou entediada e disse, mais para
si mesma do que para seu atacante:
- Sempre a mesma história. Tu não tens nenhuma
frase mais interessante para dizer, além deste velho clichê?
- Mostre mais respeito, criança, senão vai
doer muito mais! – rosnou o belo Lobo de olhos cor de mel.
- Oh! Sim, eu sei o quanto vai doer... –
dizendo isso, Chapeuzinho desferiu um rápido pontapé bem no meio das pernas do
Lobinho belo e não tão mal assim.
Enquanto ele se contorcia de dor no solo em
que caiu uivando, ela se foi novamente pela estrada, chegando rapidamente na
casa de sua avó. Quando se postou a frente da mesma, observou aquele cenário
tão conhecido. Olhou a floresta tão desmistificada, a cesta que sempre
carregava obedientemente para sua mãe, que preferia mandar sua casta filha para
a floresta, em vez dela mesma enfrentar os perigos que ali poderiam haver por
ser mais experiente. E, ao visualizar tudo isso, a menina sentiu um cansaço e
um tédio imensos.
Então, ela virou as costas para o chalé
daquela avó que nem sabia se era realmente a sua, e saiu saltitando pelo
caminho a frente, cantarolando um rock undergroud:
- Pela estrada inóspita vou rapidamente,
para desbravar o mundo bem contente...
Fragmento XII: Dimensões Paralelas
E a Chapeleira estava caminhando
tranquilamente pela Terra do Nunca, observando lindas paisagens, belas
quimeras, revoltas bem digladiadas, com Peter Pan e Capitão Gancho sempre
pelejando, mas as normas de Genebra cavalheirescamente respeitando. A dimensão
paralela estava orbitando como de costume, para o encanto da passeante. E ela
estava contente, embora sua taciturna personalidade estivesse de plantão.
E então, uma bomba explodiu naquele rincão.
Peter Pan e Capitão Gancho, assustados com o ataque terrorista, quedaram-se
silentes, juntamente com seus comparsas. Alice decidiu expungir, arrepiada com
o que via, pois até ela tinha lá os seus limites, e todos os habitantes da
quimérica dimensão, calaram-se num repente, pois o ataque fora horripilante.
Um bad warrior psicótico, mas não por ser
neurótico de guerra, apareceu então. Gritava sua revolta expelindo foguetes,
disparando bazucas, explodindo granadas e metralhando seres doces ou
revoltosos...destruindo casas, casebres, palácios, carruagens, carros, matando
cavalos ou unicórnios. Nada estava a salvo de sua verberação, sua agressão
simplesmente para chamar a atenção para sua loucura ou sua sanidade indigente.
E a Chapeleira ali restou, observando
aparvalhada o genocídio que surgia ante sua visão: corpos jogados ao chão,
prédios destruídos, veículos de locomoção avariados, e ninguém conseguia fugir
daquela danação. E ela viu crianças pequenas, atingidas em seus sonhos puros,
tentando ser maduros adultos para digladiar com a devastação, e crianças
grandes, tentando mostrar racionalidade e proteger-se a si ou a outrem, mas sem
obter nenhuma vitória expressiva. Observou crianças idosas, que na dimensão
paralela tentavam ser acolhidas, serem agredidas e mortas sem dó, sem piedade,
nem motivo.
Na loucura formada e presenciada, mal
percebeu a Chapeleira que também fora atingida e um de seus braços, o que lhe
alimentava a mente, estava tetricamente partido. Mas, não sabe se conseguiu,
tentou avisar alguns passantes da monstruosidade que estava a solapar o mundo
da imaginação. Seu braço talvez pudesse ser consertado, mas seu coração restou
dolorido e sua visão começava a desaparecer porque acabara perdendo seus óculos
tentando escapulir da artilharia pesada. Conseguiu ao menos acatar todos os
conselhos do Gato de Cheshire.
E a devastação se fez tão grande e a guerra
tão descabida, e a fumaça ardia tão forte, e o cheiro de morte era tão
terrível, que a Chapeleira quedou-se inerte. Pensou: “Se aqui não há, no dia de
hoje, guarida, e nada posso fazer pelos desvalidos a não ser chorar lágrimas
invisíveis, como Alice vou expungir e visitar outra Orbe”.
Então, ela desligou sei veículo de viagem e
aterrizou na Terra dos Gigantes, também conhecida como Realidade, ou Ilha
Açoriana. E vestiu sua roupa de menina, colocou seu óculos escuros, seu boné e
foi a procura do sonho de que nesta terra, apesar de suas mazelas, ainda
haveria algum ser risonho, alguma bondade adormecida, algum recanto de paz e
frescura.
E ela caminhou, caminhou e olhou os
passantes e alguma paz começou a sentir. Entreviu alguma gentileza, ao ser
acolhida na mesa alheia, ganhou um pequeno marcador de páginas de uma doce
criança, foi chamada por seu título, que desejava esquecer, mas que já era
hábito dos outros reconhecer, brincou com os ajudantes da casa dos livros e
ouviu o sonho de formatura de uma estudante, que angustiada estava por ter que
ler filosofia e nada poder fazer.
Então, a sonhadora ressurgiu momentaneamente,
e lembrou que um dia também fora uma criança que precisara receber incentivos
para sua graduação de doutora alcançar. E num ato impensado, doou um livro para
a estudante que precisava, mas não o queria receber. Não importava se fora
manipulada, não importava as faces incrédulas com a doação praticada como a
dizerem “ela não merece”, ou “a doutora enlouqueceu de vez?”. Não importava a
inveja entrevista nos olhares dos gigantes que não conhecem a arte da
gentileza, nem a necessidade que alguns doarem até o que não têm. Nada mais
importava. Ela precisava este ato fazer para novamente crer que ainda era um
ser gentil, apesar da dureza que a vida lhe deu.
Então, sentindo-se um pouquinho melhor, ela
resolveu retornar ao seu emprestado lar, para descansar das suas aventuras, das
suas viagens, das suas dores e alegrias, das suas quimeras destruídas e de toda
danação que na Terra do Nunca seus olhos míopes viram, e das gentilezas e
invejas que na Terra dos Gigantes sentiu existir.
Lá chegando, seus óculos ainda
desaparecidos, teve que encontrar os antigos (talvez, por um tempo, assim fosse
preferível, enxergar de menos do que melhor), vestiu seu vestido leve de estar
em casa, descansou um pouco, e reuniu as últimas forças para viajar a Terra do
Nunca e saber como a Guerra estava sendo travada.
Para sua alegria, o bad warrior havia sido
expungido: Peter Pan e Capitão Gancho uniram suas forças, afinal naquele rincão
somente eles podiam lutar, pois as normas nobres de Genebra eles ainda
conseguiam respeitar, as crianças pequenas, grandes e idosas sobreviventes já
estavam sendo amparadas, a paisagem já estava voltando a colorida ser e até a
casa da Chapeleira estava em estado de franca reforma. Talvez seu braço não
estivesse tão irrecuperável também.
E aqueles habitantes desta dimensão
paralela que talvez estivessem viajando na hora da mais terrível guerra já
vista nela, ao retornarem embora ainda encontrassem alguns resquícios da
batalha ferea, possivelmente nem perceberam o quanto sua orbe, por um momento
aparentemente quase interminável, havia estremecido.
Essa guerra iria, com certeza, entrar para
os Anais da Terra do Nunca, e a Chapeleira ainda se lembraria do que vira e
fizera e sentira na Terra dos Gigantes. Mas, começou a adentrar no mundo do
sono concluindo: “Apesar de tudo, sonhar ainda é preciso”.
Fragmento XXI: Ensaio Gramatical
Estou louca. É
impossível continuar assim. Estou só. Fico só. Sou só. Sou estranha. Meus
hábitos constantes são instáveis. Meus amores são diversos. Não. Não são
amores. São vocábulos em brasas, avassaladores. Destroem-me a todo o momento.
Não deixam que reste de mim uma só partícula para que eu possa me reescrever.
Nada sobra de mim. E, no entanto, eles persistem em ficar e aumentar ou eu os
deixo me tomar.
Então, sou só. Fico só.
Estou só. Não há como mudar. Não há como voltar atrás. E do que penso ser acabam
restando somente rascunhos, que contam a história em partes, sem dar ao leitor
ou a mim o real significado do que aconteceu de verdade, do que me partiu, do
que me feriu ou construiu.
Estou tão séria. Outros
me olham, perguntando-se o que terá acontecido. Não há resposta plausível para
isso que me assalta. Quisera que eu nem tivesse percebido. Então, fico aqui,
nesse canto. Estou só, sou só, fico só. Talvez eu sempre esteja. Talvez eu
sempre tenha sido. Deveria ter aprendido a conjugar o verbo ser solitária
(intransitivo, pretérito, presente, futuro mais que perfeito, definitivo e
infinitivo) e não ter me enganado, conjugando-o como se eu apenas estivesse ou
estava (verbo transitivo, pretérito, presente e futuro imperfeito terminativo,
claramente definível). Mas que sei eu de gramática? Nunca aprendi as regras e
nem quis sequer memorizá-las. Gostava tanto das indefinições, dos antônimos,
das metáforas e simbolismos!
Nunca quis rever
conceitos, aceitar sinais de pontuação, trocar palavras por suas irmãs gêmeas,
embora sempre me sentisse atraída pelas contradições e perigos dos neologismos
e silogismos. E agora estou aqui: só, muda, desconcertada. Ou seria
desnorteada?
Acreditei que quem
estava a alguns passos de mim é que era um estranho no ninho, que tinha
costumes esquisitos. Quis crer apenas na possível excentricidade de minha
inquieta alma. Na verdade, tudo não passou apenas de palavras mal escritas ou
semintrepretadas, teoria crítica desinformada de uma literatura incompleta e
incompreensível, por não dizer nada, nada significar, nada declarar. Nem para
mim, nem para outrem. Vazio literário intangível e impenetrável.
Então fico aqui,
sozinha, fones no ouvido, olhos grudados num quadrado luminoso onde palavras
inverídicas aparecem enquanto vou apertando teclas de plástico insensíveis,
formando, sílaba após sílaba, uma frase que não sei se terminarei. Afinal, não
estou dizendo nada, ainda que exista muito a ser dito. Prosa que tenta esconder
o real significado por trás de todas as coisas que ocorreram, ocorrem ou
ocorrerão. Faltar-me-á coragem? Um dia irei admitir que nem toda a verbosidade
do mundo pode contar o que eu senti, sinto ou sentirei.
Por isso fico só, estou só, vivo só. Por
isso enlouqueci. Quando palavras não podem transmitir o que pensamos, sentimos
ou vivemos, será possível acreditar que ainda fazemos parte de algo, ao menos
do mundo literário que supostamente redigimos?
Ele viu e previu tudo que iria acontecer,
menos o que, de fato, ocorreu no final de todos os acontecimentos.
Mas esse olho que tudo viu, vê, deveria ver
e acreditava que percebia, continuava a observar a paisagem ao redor, buscando,
sonhando, questionando. Algo certamente iria suceder, ou alguma coisa ele teria
que fazer se desejasse absorver tudo o que observava diante de si.
Embora fosse apenas um olho, também ouvia.
Sentia o tato, o contato, o paladar e o olfato, que se aguçava quando certo odor
percorria o ambiente. Ele queria interagir, participar, mostrar sua presença;
sentir que era pressentido, sentido, ouvido ou cheirado igualmente. Entretanto,
não dizia nada. Revirava o globo em sua órbita para indicar sua ausente
presença ansiosa.
E quando lhe perguntavam por que não se
manifestava perante tudo que via, ouvia ou sentia, o olho apenas devolvia um
olhar suplicante onde tentava fazer com que entendessem sua máxima: “Eu preciso
desse silêncio para viver tudo que vejo.”
No entanto, nem todos sabiam (não existia
tal obrigação), nem deveriam saber ou entender de olhares. Nem todos aprendiam
a decifrar as chamadas “janelas da alma”. E o olho que tudo via, ou assim
pensava, continuava a absorver o mundo. Engolfava-se nele, lutava, chorava,
ria, mesmo que ninguém compreendesse plenamente o que ele mostrava ou vinha a
refletir em sua pupila.
E esse olho-corpo repetiu a máxima tantas
vezes já expressada ou repisada em bons ou maus textos: “A pior solidão é
aquela que se vive acompanhada.”
Pensamento este que ele completava com
outros questionamentos pessoais: “Mas será esta mesmo solidão? E se o é, porque
se fica solitário embora acompanhado? É porque assim se quer ou não se consegue
evitar? Existe uma obrigação em ficar ou partir? Ou o ser em solitude sofrida
ou imposta não sabe dividir, somar, multiplicar, diminuir ou interagir? De quem
é a culpa, se é que esta existe?”.
E voltava a observar o mundo, deixando a
pergunta de filosofia esdrúxula ou não para responder depois, ou então tentar
conformar-se em não obter a resposta, pois, às vezes, era assim: não havia
respostas e só.
Então, quando chegou o final lógico, mas
não previsto, ou livremente ignorado pelo olho que tudo via, e afinal não, ele
apenas pensou: “É isso. Vou apenas esperar. Talvez, se surgir um novo momento,
eu tenha coragem para declarar em vez de apenas observar, passivamente, a
paisagem a minha frente”.
Fragmento XVII: Stalker
Se eu pudesse eu
devoraria um alfabeto inteiro para amainar essa minha fome. São necessárias
tantas letras, tantas palavras para descrever o que vai pelo mundo a fora ou
interior. Seria preciso até criar algumas novas para melhor definir o que se vê
ou o que apenas se vislumbra.
Eu devoraria todos os
alfabetos do mundo, misturando todas as palavras existentes ou ainda por virem
a existir para poder contar o que eu vi, o que não vi, o que eu quis ou do que
abri mão.
Uma a tartaruga segue
nadando no canalete, espiando a vida sobre a água na qual navega e que é
insuportavelmente poluída quase sempre, ou todos os dias. E eu vou perseguindo
o bicho, tentando entender como ele consegue respirar ali, logo ali, naquele
pequeno riacho negro, embora aparentemente límpido. Tentando entender como ele
continua vivendo, apesar dos resíduos que precisa engolir durante seu nado
sincronizado. A tartaruga se sente acuada, perseguida e se pergunta: “O que
essa louca quer atrás de mim?”, posso ver a pergunta refletida em seus olhos
anfíbicos, que também me observam atentamente.
E o alfabeto sorrateiro
que se instalou em minha psique segue marchando catatonicamente em meu cérebro,
produzindo palavras com ou sem significado: felicidade, displicentencefalodolormente,
solidão, otromoaçaroc, rotina agridoce de cafeteria sem freguês, oasulised...
E as reações adversas
que a toda hora me suscita a literalidade das coisas percebidas me fazem
estarrecer diante da inércia que me vai tomando. Não. Não sou, ou não estou me
dessensibilizando. Apenas endurecendo e isso me assusta. Por que a dormência
nunca foi meu ser irrequieto. Mas essa voz em meu cérebro tem que se calar a
qualquer preço.
A tartaruga já
percorreu bem mais que cem metros: sou uma ‘stalker’ de animais. Essa tortura
quebra a paz deles e me concede certa satisfação: tentar capturar a foto que
marcaria a existência de um ser vivo num ambiente impróprio para a vida e sua
perpetuação. Talvez isso seja esperança?
Volteiam palavras em
minha catastrófica mente. A poluição sonora me abala os nervos. Fujo de vozes
humanas. Eu queria apenas o barulho de algo que não existe, enquanto isso ele
vai compondo estrofes com as palavras do alfabeto corriqueiro. Quero perseguir
a antiga ideia de que tudo é possivelmente remediável ou, ao menos, possível de
ser suportado.
Navegam peixinhos no
aquário poluído do canalete riograndino. Sinto falta das hortênsias que aqui
cresciam. Deslizo a mão pela amurada. Espreito mais uma vez a tartaruga,
coitada, que ainda se sente assustada de mim. Queria eu ser ela.
E o alfabeto, talvez,
será minha salvação ou perdição. Mas nada vai conseguir matar essa minha fome,
pois a música açaima minhas paixões aniquiladas. Não irão sobrar palavras,
mesmo oriundas da inventividade, para limpar a degradação que adentrou a cidade
de forma tão inesperada.
Fragmento XX: Humor Vítreo
Pombos pretos a pairar sobre a
abóboda medieval pensam ser corvos a espreita do cadáver do qual se aproxima o
funeral. Garras afiadas em patas escuras, do gato preto, ser noturno, que se
arrisca a desfilar a luz do sol, para ocultar-se até que horas tétricas lhe
permitam começar sua caçada habitual.
E o cadáver ali, no fúnebre caixão
abismal. Os entes queridos do morto, que de suas faces deixam vertes lágrimas,
não sabem se choram a perda do então falecido ou sufocam por causa do miasma
produzido pelo calor infernal.
Ah! Dores extremas açoitaram o
pobre defunto que jaz próximo de baixar a sua última pousada. Quem tão atroz
veleidade praticou, arrojando da vida um pai de família que ora está prestes a
ser devorado por vermes impertinentes, estes seres malditos que todos temem?
Andava o ora morto, outrora vivo,
por uma rua escura, retornando do labor diário que mal pagava as compras para
saciar da família sua fome natural. Vinha cansado, arrastando os pés, depois de
horas sem fim numa repartição pública obscura. Mas vinha em paz, dever
cumprido, o parco salário no bolso: ia encontrar pouso e um certo descanso
afinal.
Entretanto, ao chegar ao escuro
beco que levava a sua humilde pocilga familiar, algo lhe arremete brutalmente
contra a parede de tijolos. Escorre sangue pela mesma, crânio partido, mas o
trabalhador ainda respira. Uma sombra se projeta sobre o infeliz e lhe rasga a
garganta e devora as partes mais suculentas de seu corpo, enquanto o pai de
família expira e seus olhos arregalados absorvem a figura que, parcamente
saciado, agora se afasta cambaleando pela viela fria.
No outro dia, vizinhos horrorizados
chamam a polícia, a família desatina. As investigações nada deixam escapar, mas
também nada conseguem provar. Sentenciam as autoridades: “Foi um bárbaro
meliante. Nenhuma pista mais há. O salário ficou, deve ter se assustado com
alguém que estava a passar”.
E o morto foi transportado a sua
casa, encomendado o caixão, realizado o velório. Lágrimas derramadas e, enfim,
o enterro onde mulher e filhos, junto com os vizinhos sorumbáticos, não
conseguiam entender o crime praticado, nem a fácil desistência das autoridades
em buscar o criminoso nefasto.
Mas se algum deles fosse entendido,
ou respostas realmente desejasse encontrar, bastaria observar o humor vítreo
dos olhos cadavéricos e encontraria a última imagem que o falecido gravou em
sua mente.
Enquanto o funeral terminava, o
circo de horrores que sempre permaneceu naquela gélida cidade, e era sua
atração principal, partia, levando em um de seus vagões a aberração que causara
a cruel carnificina.
Portanto, ponde-vos atentos
leitores destas estranhas linhas. Vós não acreditareis jamais no que ora vos
alucina.
Fragmento XXIV: Apenas mais uma História de Amor
Por que estes
olhos tristes, menininha? É porque teu principezinho ainda não chegou? Por que
não tens aquela bonequinha que viste na vitrine? Por que não ganhastes os doces
que querias? Ou será porque teu sorriso chora lágrimas, mesmo quando estás com
gente boa?
Porque, porque
teus olhos castanhos tão grandes e belos mostram tão limpidamente para mim essa
tristeza, que não cabe nesse mundo de Deus, mas que outros parecem não ver?
Tens uma
travessa amarela para alegrar teus curtos cabelos, onde se percebem minúsculas
bolinhas brancas. Serão pequeníssimos flocos de neve? Ou sugerem a existência
de alguma coisa viva a transitar em tua cabeça?
Teu pequeno
corpo está coberto por um vestido meio curto (creio que não era teu, como tudo
que tens), um casaco batido de pelo mesclado e teus pezinhos calçam tamancos,
sem meias, deixando a mostra uns dedinhos meio roxos, com unhas um tanto
enegrecidas, que bem combinam com a tua vida insípida. E teus olhos de longos
cílios continuam a refletir essa tristeza que somente alguns adultos conhecem.
Então, me conta:
porque estás tão triste, pequenina? Será por causa da travessa que não combina
e nem alegra teus cabelos opacos? Será pelos minúsculos flocos de neve ou de
outras coisas que vivem em tua cabeça? Pelo vestido curto que nunca foi teu realmente?
Pelos tamancos que não aquecem teus pés?
Sentirás falta
de teus pais que quase sempre estão viajando? Tens medo das pessoas que hoje
estão a tua volta. Desejas o caderno de desenho do teus dois irmãozinhos, que
se distraem rabiscando figuras fantásticas, enquanto tu, tu tens que te tornar
algo maior, deixar as fantasias para
eles e cuidá-los contra o mundo? Aliás, quem cuida de ti, menininha triste?
Será que alguém
vê tua pobreza, teu frio, teus medos, tuas tristezas, tua solidão, teus
pequenos sorrisos tímidos, teus sonhos secretos de criança crescida? Será que
alguém ama a ti, tão grande e pequena, tão inocente e tão suja, tão triste, tão
infeliz?
Então, teus
dedinhos das mãos encontram os cabelos da moça bonita ao teu lado e que hoje,
por um breve momento, está zelando por ti. São tão macios, tão lisos, tão
brilhantes. Tu o afagas com um misto de inveja e alegria por conseguir o que
tanto desejavas.
Será que eles
lembram os teus cabelos quando eram compridos? Será que tu os deseja para ti? E
um sorriso verdadeiramente feliz brota em tua pálida face e ilumina teus olhos
escuros por um segundo. Ah! Este teu sonho! Querias ter cabelos compridos e
bonitos como o da tia que, ao menos hoje, cuida de ti.
Ah, menininha!
És moribundamente triste, como a tristeza do mundo que vive de sentimentos
mortos, preferindo a fantástica hipocrisia de livros amorosos do que ver o amor
nos tristes olhos de menininhas pobres como tu.
Fragmento XXIII: Gestação
Estou grávida: de uma gestação um tanto
estranha, talvez aziaga. Que dizer? Em meu ventre estão se desenvolvendo, ao
seu bel prazer, criaturas normais e aberrações conjuntas ou individuais. E eu os
estou parindo juntos, ou um só por vez, já por toda esta minha vida inteira ou
partida.
A cada ano estes esquisitos filhos meus vão
nascendo com rapidez cada vez maior, ou pouco a pouco, um por um ou muitos de
uma única vez: idéias, planos, desejos e insensatez, teses, pensamentos, poemas
e devaneios. E eles vão saindo assim, sem avisar-me, ou com dores lancinantes
que me levam ao parto mais doloroso, ou através de abortos indolores, onde
somente o sangue, que jorra farto e rubro, denuncia ao mundo a criatura já não
tão nova que lancei ao mundo.
Estes seres podem beleza possuir, acalentar
outras criaturas que pela mesma estrada passam, ou podem ser aleijões que
rasgam as humanas delicadezas, destroçam a natureza e nem sequer em perdão
pedir se importam. São filhos monstruosos e dementes, trazendo terror, com suas
ações libertinas, ao mundo que originei. Enquanto isto, os lindos irmãos seus,
tão ternos, doces e puros, se não medram e fogem, tentam reparar os danos dos
mentecaptos fraternos seus.
E há, ainda, os enjeitados rebentos que
gero e escondo no canto escuro da minha icefire casa. São os filhos
abandonados, que de mim afasto com repugnância, não por serem monstros ou
belos, mas por serem incompletos; por terem sido gerados e nunca
complementados. E eles ficam a olhar-me do escuro, com seus olhos brilhantes de
amor e esperança, encolhidinhos, sem reclamar.
Se eu pudesse, a estes já teria matado ou
mandado matar, mas seus olhos refulgentes na escuridão, detentores de um amor
por mim tão incondicional, como o cão que é chutado pelo dono e mesmo assim lambe
suas feridas, fazem os meus baixar de vergonha. Então, não os deixo de mim se
aproximarem. Contudo, jogo-lhes nacos de alimento à distância, sem retirar-lhes
totalmente as expectativas, mas sem conceder-lhes total esperança de
encontrarem liberdade.
E como se já não bastassem os filhos
legítimos, sejam belos, feios, enjeitados, ternos, incompletos ou feros, ainda
decidi dar acalantos a um bastardo espoliador, que em meus seios quer, a todo o
momento e incansavelmente, alimento obter.
Adotei o renegado, crendo que era
domesticável, compreensível e alguma sensatez poderia lhe dar. Abracei o filho
maldito chamado de “Conjunto de Normas de Relação”. Certamente, com tal nome,
somente poderia ser danação. E ele não se nutre apenas do leite meu já tão
escasso, mas suga meu ser até de mim a seiva última espremer.
Quem mandou eu, uma criatura estéril, tão
maternal ser? Quem me deu estas ânsias de parir um universo e pseudo-segurança,
de que a ele conseguiria gerir, quando sabia antecipadamente que meu corpo
débil não teria forças para manter a ordem, nem impedir o caos de a minha porta
bater, nem poderes para as doces ou tétricas criaturas minhas conter de fato?
No entanto, a gestação espúria desta
mãe-férea-terna continuará a ocorrer e findará apenas quando eu deixar de existir.
Ainda nascerão outros filhos diletos, tortos, rejeitados, belos, incompletos ou
ferozes. Não poderei evitar tal fado tépido ou terrificante: nasci para parir
e, ao fim, em minha lápide, talvez um lindo e melancólico epitáfio escrever.
FRAGMENTO
FINAL:
Álbum
de Fotografias
“Estou triste: de uma
tristeza meio morna que aquece e esfria meu ser. Como se faz para juntar o
antes, o depois e mais o meio que se perdeu entre um e outro e parece não fazer
parte do contexto? São fragmentos temporais estes. Não se reajustam, não se
complementam e parecem um álbum de velhas fotografias, onde só restaram fotos
desconectadas das épocas em que posei para elas”.
E a vida prosseguia
assim. Ela juntava pedaços de tempo: alguns alegres, outros emotivos, outros
tristes, como de praxe, tentando restaurar o álbum de sua vida que em algum
momento fora assaltado e quase aniquilado.
“Estou alegre! Hoje
recuperei uma parte de um livro que eu havia esquecido na praia e quase foi
levado pelas ondas. Era o último pedaço de uma obra rara. Quando de lá sai não
me dei conta que havia esquecido esse delicado trabalho. Mas um frequentador
assíduo das praias alheias, percebeu meu descuido e guardou a raridade até que,
em algum momento, eu voltei aquele lugar e ele me devolveu o que a mim
pertencia, mesmo que fragmentado”.
Por vezes a vida lhe
fugia e quando ela conseguia recuperar algum vestígio do que ela esquecia ou
escondia, sua alegria voltava, embora de forma levemente melancólica, pois ela
não conseguia se responsabilizar pelo que era seu. E isso, com o tempo, lhe
causava transtornos e a tristeza ressurgia. Mas, por hora, ela tinha um novo
motivo para ficar contente, mesmo que apenas por alguns dias.
“Estou emotiva.
Presenciei um acontecimento que me tocou assim como uma sinfonia. Era tão bela
a cena e tão triste! Nada pode descrever com exatidão o que eu vi. Então, vou
fechar os olhos para manter na memória esta ocasião indescritível, como uma das
fotos bonitas ou feias que perdi e desconjuntaram meu tempo, mas que poderei,
ao menos, evocar do meu centro nervoso para lembrar os sentimentos que um dia
eu vivi”.
E assim sua vida se
resumia. Navegar no tempo de forma estranha, como um relógio que anda de trás
para diante, ou vice-versa, com seu tique-taque normal ou exótico,
descompensado pelo que ela ia perdendo ou ganhando, sem nunca conseguir
explicar o que de fato perdia.
Seu tempo era diverso
do tempo dos demais. Quando ganhava, perdia, quando perdia, não ficava
totalmente privada, mas também não adquiria muita coisa. Somente sua confusão
temporal continuava a existir. Não importava se o relógio podia dobrar a fenda
dimensional, estagnar o correr do dia, adiantar a passagem da noite. Ela
estaria sempre perdida entre o meio, o início e o final.
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