LIVRO I
HumanaMente[1]
“Tenho evitado cuidadosamente rir-me dos atos humanos, ou desprezá-los;
o que tenho feito é tratar de compreendê-los”. Baruch Espinoza
“A compaixão é que nos torna verdadeiramente humanos e impede que nos
transformemos em pedra, como os monstros de impiedade das lendas”. Anatole France
CAFFÈ
ESPRESSO
Serve-me um café, por favor.
Um caffé espresso duplo,
tão amargo quanto esta vida ao redor,
mas tão suave que me faz feliz.
Serve-me este café, sim.
Sem gentilezas, sem rodeios.
Apenas me deixa dele beber,
para gozar, com agrura ou exultação,
desta triste melancolia
que em tudo percebo conter.
Até sinto o gosto e o perfume dela!
Nem sei bem como dizer...
Um café assim bebido,
mistura de alegria ou dor
(quem sabe agridor?)
um tal prazer concede,
que esta que o pede
já não sabe
se o deseja
ou se o repele.
CONCERTO
Nº 1
É muita luz para
os meus olhos fracos.
É muito barulho para
os meus ouvidos surdos.
Mas ainda preciso de
um banho de raios
ultravioletas.
Ainda preciso da
dissonância
da balburdia da rua
cinzenta.
Passos trôpegos nas
calçadas.
Lixo que se acumula nos
passeios.
Seres que se
entrechocam
mas não se veem.
Automóveis assassinos.
Pedestres suicidas.
Sem tetos enlouquecidos.
Operários confundidos.
Ricos embevecidos.
Tudo, tudo
Nada, nada.
A vida passa.
A vida para.
A vida recua e
continua.
A dor lateja.
A alegria se
metamorfoseia.
É pouco barulho para
meus ouvidos atentos.
É pouca luz para
meus olhos sagazes.
A morte ainda rodeia.
As ventanias ainda
tonteiam.
As geladuras ainda
queimam.
Mas a vida cria.
A vida assovia nas
praças,
zumbe nas flores,
nos sorrisos das
crianças...
A vida avança.
Stacatto:
chegou a primavera.
VIBRATTO
Eu desisti da minha voz...
É tão profundo esse silêncio
que, quando um timbre
me escapa dos lábios,
até me sobressalto.
Eu esqueci minha voz...
E agora o que eu faço?
ARIDEZ
Meu coração já secou...
Foram tantas as lágrimas
que neste chão
nada restou...
ROCHA
E com a passagem da água
a rocha se desgasta.
Quando o nervo é atingido,
o ser de dentro urra,
mas não se rebaixa.
CREMAÇÃO
Qual
a temperatura ideal
Para
que um coração arda?
A
quantos graus ele será
total
e
irremediavelmente
aniquilado,
cremado,
carbonizado?
Este
coração
que bate
que transpira
que sussurra
que esfria
que grita
agora
deve ser espezinhado.
Ele
queimará...
Ele
sofrerá agruras.
Que
intensidade de combustão
tornará
um órgão irreparável?
Por
fim, nada restará.
Apenas
o silêncio do vento
espalhando
as cinzas
do que já se perdia.
SENDEROS
Traço
caminhos
na
lisa argila.
Invento
curvas, formas, desvios:
deslizo
as mãos para aplainar.
De
repente,
introduzo
os dedos.
Crio
cavernas e poços
para
a nova forma variar.
Visualizo
um rio aqui,
um
arroio acolá...
A
água suavemente
escorrendo
por minhas mãos.
E
sinto o perfume
de
flores a exalar seu pólen
no
ar rarefeito
da
planície que vai surgindo.
A
maciez da grama,
que
recobre a terra,
se
faz de leito onde posso
deitar
para dormir,
depois
de tanto prazer gozar.
Eu
refaço caminhos,
escuros
ou claros,
silenciosos
ou murmurantes,
calmos
ou inquietantes...
Eu
manipulo a argila
e
crio trilhas somente
para
sonhar.
VERSOS
TECNOLÓGICOS
Tu estás te
escondendo, não é?
Através da
tela fria do computador
da janela
do msn
das letras
que juntas
para ler
para
escrever
atrás do
silêncio...
Mas eu
penetro até ai!
Eu venço qualquer
obstáculo
Eu invado
teu pensamento
Roubo teus
sonhos
Teu sono
Te dou uma
noite de insônia
Para mais
te atormentar.
Estás
fugindo, pois sim.
Do
esquecimento
Da
lembrança
Do órgão
quebrado
Aleijado
Irrecuperável.
Mas eu
permaneço aqui
Eu quebro
Tua paz
Tua
tristeza
Tua alegria
Teu lamento
Tua cura
Tua dor
E o que
mais for preciso
Para
dominar tua vida.
Eu não dou
descanso
Eu não
concedo clemência
Eu não
prezo acordos
Eu desprezo
tuas conveniências.
Eu sou o espelho teu
revelador.
EXPOSIÇÃO
E
a criatura estranha
sentiu
que iria cair.
Entre
tantas figuras
não
sabia definir
qual
a mais perfeita
para
na parede expor.
Eram
tantas arestas
tantas
curvas
tantas
cores
que
o ser sentia-se derreter.
Via-se
adentrando naquelas telas
tocando
suas pinceladas
colagens
texturas
e
outras tramas
mas
não ousava
não
podia
não
queria
uma
somente escolher.
E
a parede seguia nua
alva
e
pura,
esperando
o quadro
que
a fosse enfeitar.
Mas
a criatura indecisa
queria
a todas
e
a todas repudiava...
A
todas excomungava,
a
todas implorava:
“Fiquem
aqui!”
E
a parede ali a espera.
Contudo,
o egoísmo patético
da
insólita criatura
não
permitiria que ela
uma
única figura escolhesse
para
adornar o vazio
das suas quimeras.
MEDIDA EXATA
Eu quis tanto
tanto
que não me
importei
em machucar os
pés
na escalada
íngrime.
Eu desejei
tanto
tanto
que não
reparei
na cor sangue
escorrendo
pela rua.
Eu sonhei
tanto
tanto
que não
percebi
quando o dia
chegou
e com ele a
realidade.
Eu renunciei
tanto
tanto
que apenas me
sobrou
o consolo de
ter
recebido o
pouco que merecia.
Nem um pouco a
mais
Nem um puco a
menos
Simplesmente a
exata medida
de algo que
não existia.
Eu apenas quis
tanto
tanto
que não tive
nada
Nada restou
para desejar.
Apenas o
esquecimento
se este for
algo
possível de se
obter.
E, no entanto,
eu quis...
Ah! Eu quis
tanto.
UM POEMA SAUDOSO
Saudade
é coisa que dói
que
tira o fôlego e deixa apenas
um
suspiro queimando o peito
feito
braseiro encandecido.
Saudade
é bicho que corrói
a
carne e faz o branco
dos
ossos ferir os olhos opacos.
Saudade
é feito porteira aberta
por
onde todos passam
mas
ninguém para,
ninguém
repara,
ninguém
pensa em ficar,
ou
fechar a cancela,
que
bate ao sabor do vento
e
a destrói por capricho.
Saudade
é coisa forte
que
nem o mate
bem
cevado pode aplacar
que
nem cavalgar
um
potro indômito pode acalentar.
Saudade,
saudade:
essa
coisa
que
é dor
agonia
ou
prazer
ainda há de me matar.
VIRAÇÃO
Eu
não sei mais viver essa mentira verdadeira
essa verdade
corriqueira
essa dor
prazenteira
essa
historia dividida. (rever)
Eu
sou um cisne que, mesmo morto,
ainda
se debate e continua respirando
Eu
sou uma carta recebida,
mas
nunca enviada.
Sou
uma música privada de sinfonia.
Sou
a composição sem melodia.
Sou
a arte que não se expressa,
a
vontade que não se confessa.
Sou...
Sou
apenas
o
vento que passa e não deixa sua marca.
A
folha viva na árvore desarraigada...
Um
rabisco confuso,
numa
página tantas vezes revirada.
CONTRASSENSO
Há
algo de triste na espera
de
quem espera
sabendo
que nada virá.
Os
olhos auspiciosos deste que,
na vã
esperança se fia,
aos
observadores desespera.
Pergunta
a razão:
“Que
consolo há na espera
de
algo que nunca se realizará?”
E o
silêncio é a branda resposta
do ser
que espera
mesmo
sabendo que nada há.
Pensa
este ser:
maior
é a tristeza
de em
nada crer
do que
esperar,
embora
sem receber.
A
esperança,
mesmo
desesperançada,
mesmo
teimosa,
mesmo
obcecada,
torna-se
a salvação última
para
quem não tem mais nada.
FLERTE
Eu flerto com a vida
a toda hora
e ela nem percebe.
a toda hora
e ela nem percebe.
Quando ela pensa
que vai partir,
eu a prendo pelos braços
e restrinjo seu corpo
num laço tão apertado,
que, se não a mata,
ao menos escraviza.
A vida
me esnoba
como
se eu fosse
uma
mendiga.
E
quando eu penso
que
vou ser repudiada,
ela me
assalta,
me
deixa desnuda,
levando
consigo
todas
as emoções,
todos
os sonhos,
todas
as realidades
que
meu ser deseja
contudo,
maldiz.
Eu e a
vida
continuamos
pelejando:
ela me
despreza,
eu por
ela imploro.
A vida
me avassala,
então
eu a isolo.
E
nesse entrevero
vamos
nos debatendo
até
que eu vença
ou a
vida me consuma.
LIVRO II
InsanaMente
“A DIFERENÇA
A diferença entre um poeta e um louco é que o poeta
“Eles dizem que para sobreviver, você precisa ser louco como um
chapeleiro. O que por sorte: eu sou”. Chapeleiro maluco
CALEIDOSCÓPIO
Vira, virou
e tudo se transforma.
O que antes era riso
agora é agridor.
Vira, virou
e o desenho é outro.
Não se repete:
- que colorido!
- que sombra, senhor!
Ponta cabeça, cabeça
zonza.
Desmonta o triângulo,
mas não muda a cor.
A variável é a mesma
E diferente.
O mundo voa,
é furta-cor,
é sombra verde,
contudo, o pensamento
sempre o desmente.
Que pena!
O
caleidoscópio quebrou.
IN MEMORIAM
O
bilhete virou carta
enquanto
mais um nome
era
sepultado
junto
com as novas ideias
que
eu tinha para compor
bons
textos literários.
Elas
se perderam,
se
perderam todas
quando
tropecei no túmulo,
que
eu já deveria ter esquecido,
recoberto
com grama e flores ressecadas
pelo
calor sufocante.
Ah!
Eu caí...
Eu
caí no negro fosso
Eu
ralei meus joelhos
e
no local um hematoma surgiu.
“Não
vai desaparecer” – pensei.
A
dor se espalhou
como
se mil abelhas
me
ferroassem o corpo, a mente.
Eu
não lembrei
(ou
me distrai?)
que
não se deve tropeçar
em
túmulos semi esquecidos
Nem
tentar escrever
quando
se perambula pela cidade.
Não
se deve escutar os noticiários...
Eu
esqueci...
Eu
esqueci de esquecer
que
se é para esquecer
não
se deve
nunca
em
nenhum momento
tropeçar
em túmulos;
remexer
no esqueleto espúrio,
nos
andrajos,
supor
que ele ainda sinta algo
ou
que não carregue mais a praga
que
acabará por te matar.
ZUMBI
As
dores...
As
dores perfuram o cérebro
como
projeteis disparados,
mas
perdidos.
“Não
entre em meu crânio-reino!
A guerra instalou-se lá
A guerra instalou-se lá
e
nenhum lobo quer abdicar”.
E
ainda luta
o
corpo-dono moribundo
para
não deixar escoar,
pelos
buracos,
gota
a gota,
os
resquícios de sua labuta
pela
sobrevivência.
“Estou morto: mas sobrevivi.
Sou
sobrevivente: por isso morri”.
E
o corpo
desapossado,
desgastado,
acabrunhado,
contudo,
irrefreável,
grita
silenciosamente:
“Estou
partido,
mas
não recuarei”.
AREIA NA GARGANTA
IN.MEN.SANA
Um
momento de loucura
talvez
seja o que eu preciso
para
recuperar minha lucidez.
Um
momento de insanidade
de
tormentosa mania
de
infinita melancolia gris
fosse
o que me bastasse para
dotar-me
outra vez
de
voz, ouvidos e olhos.
Quem
sabe após o surto
eu
voltaria sorrindo
para
a vida que vibra
no
dia claro e azul
que
percebo reluzir
por
entre as cortinas que
recobrem
minha janela.
Talvez
aí eu regressaria tranquila
para
tudo que deixei passar
para
tudo que deixei escoar
pelas
ruas
pelas
casas abandonas
pelos
lugares espúrios
que
minha mente convulsa
resolveu
desbravar.
INTERPRETAÇÃO
Esboças
sorrisos tortos.
Contas
novas ou velhas piadas
e
finges que tudo
é
fácil ou prazenteiro.
A
música irrefreável
foi ao
meio solapada.
Três
ou quatros acordes
tentaram
sobreviver
e
foram duramente
assassinados
no ar.
A
ilusão foi dispersada,
antes
de fazer casa
num
coração juvenil,
apesar
da carcaça
estar
envelhecida.
Então,
persegue teu distante
sonho
de artista.
Quem
sabe assim
enganas
os corriqueiros.
Ou,
ao menos,
esta
coisa que chamas de mente,
muito
embora inconsequente.
SONHOS
ESDRÚXULOS
Eu não gosto de sonhar
Estes sonhos
esdrúxulos...
Ver um rio correndo,
desprezando suas
margens,
resvalando pelas
planícies ao lado,
esfriando a terra, as
plantas,
alguns fungos e
animais.
Eu não quero
esses devaneios
assustadores.
Essa máscara me
perseguindo,
com sua carranca de
riso,
seus olhos rubicundos,
suas vísceras
abismais...
Não!
Grita ao fundo o ser
que se recusou a
nascer.
Eu renego estes sonhos
profundos,
infernais,
paradoxais.
BLACKOUT
Um blackout
e o mundo ressurge
na escuridão.
Um blackout
e o mundo ressurge
na escuridão.
A mente profusa
desliza entre
o que
é sonho
e o que é real.
e o que é real.
Um apagão
e tudo vira
cega sensação
muda exclamação
terrível inexatidão.
E quando a claridade retorna
num mundo estranhamente igual
mas intensamente desestruturado
já não sabe a criatura
a diferença entre
o que foi devaneio
o que foi realidade.
Entre
o que
foi abstração
e o que foi
e o que foi
tormentosa
ambição.
MULTIPLAMENTE
Fecha
a porta dessas estranhas comunicações.
Esconde
as mãos nos bolsos furados
das
tuas calças novas.
Encobre
tua face de mármore.
Dissocia
tua persona da tua imagem.
Eu
quero ferir a face da brutalidade.
Arrancar
a insensível pele da maldade.
Jaz
em mim uma revolta desmedida...
Já
não posso fugir ao desproposito
de
tudo que me alucina.
Corre
o sangue fervente pelas veias,
mas
a dormência intempestiva,
daquelas
meias verdades sentidas,
subjaz
no âmago dessa fúria contida.
Ah!
Verei
o sol ainda brilhar por sobre
as
vestes dilaceradas da candura,
a
triste vergonha da pureza corrompida.
As
minhas retinas fixarão tristemente
as
sequelas das mentiras difundidas.
E
morrerei,
por
fim,
a
morte vivida todo dia.
LIVRO III
InsensivelMente
Da maciez de uma esponja molhada até à dureza de uma pedra-pomes,
existem infinitas nuances. Eis o homem. Honoré de Balzac
Uma vida não questionada não merece ser vivida. Platão
INOMINÁVEL
Eis que da estranha mente
surge um inominável
Diário Negro.
Ali justapostos estão
não os segredos desajustados
de um louco
maníaco
desgraçado
vadio
ou
vilão.
Mas os últimos e etéreos
sonhos
utopias
esperanças
mistérios
sorrisos
de
uma criança em inanição.
ACROBATAS
E a tristeza cai como um véu.
Recobre a fronte alva
e escurece os olhos de quem
por ela é envolvido.
E a tristeza cai como um véu.
Recobre a fronte alva
e escurece os olhos de quem
por ela é envolvido.
Porque será tão difícil
mostrar o quanto essa nuvem dói?
Porque é impossível explicar
o quanto ela é escura e densa?
E a face esconde os traços (?)
que a dominam tenazmente.
Esboça-se um sorriso
meio torto, meio rígido,
que, no entanto,
consegue
convencer que nada há...
Os músculos faciais
são
acrobatas
das tristezas não ditas.
das tristezas não ditas.
Mostram-nas ou ocultam-nas
de quem não sabe interpretar
os tristes sorrisos
daqueles que nada sabem falar.
ENCONTRO[2]
E
em meio a tantos desencontros,
à
palavras mudas
ou
gravuras surdas,
que
rodeiam e zunem pelo ambiente,
três
seres se encontraram.
No
colorido da desesperança
do
um abraço
que
absorvia dois deles
havia
tanta melancolia
tanta
expectativa
tanto
desamparo
tanta
súplica
que
o terceiro ser sorriu
e
quis doar seus braços ao par.
Mas
na cidade cheia-vazia
não
é permitido aos dedos frios
um
toque sequer sentir.
A
luz que tudo cobria
não
levava consigo
as
sombras que por ali
insistiam
em tudo empoeirar.
Os
três seres se encontraram...
Contudo,
a cidade fria
não
concederia a eles
o
mínimo acalanto.
E
o ser terceiro partiu,
eis
que o tempo lhe chamava.
Teve
que, com secas lágrimas,
o
par deixar solitário,
com
seu desamparo,
debaixo
da luz gélida.
Em
meio
à
palavras mudas
à
gravuras surdas
um
terceto se desencontrou.
Cada
um deles se foi,
por
caminhos estranhos,
sozinhos
ou acompanhados,
carregando
sua dor,
sua
solidão,
sua
condição infeliz
de
humanos sem face.
NOTA DE FALECIMENTO
A humanidade morreu.
E ninguém anunciou sua morte
em algum jornal, folhetim ou
livro.
Ninguém sentiu sua falta,
nem mesmo eu.
E a vida continuou.
Os autômatos diziam viver.
Quem desejava realmente ver
as doenças nas praças,
a fome que não tardava,
gritando muda nos barracos;
a dor embaçada nos olhos
daqueles loucos sem morada
ou dos ditos sãos que ainda
andavam?
Os demagogos continuam
a murmurar suas
frases-clichê
afirmando que são os únicos
que lutam, que se importam
e veem o que os demais
se recusam a ver, ouvir ou
responder.
Nada mais existe.
A humanidade morreu:
antes da grande peste,
antes de qualquer grande
guerra.
Ela já estava condenada,
somente fingimos não
perceber.
QUESTIÚNCULAS
Transcender:
a menos que se quebre a barreira do visível
e se toque o cerne do universo
não é possível ver?
Transgredir:
a menos que se fira a carne
e se rompa o limite tacanho do espaço
não é possível liberdade ter?
Sobreviver:
até que se suporte todos os males
e se conheça todas as misérias
não é admissível viver?
Endurecer:
até que se sinta todas as fomes
e se crie uma pele-armadura
não é permitido sensibilidade obter?
Enlouquecer:
a menos que se exceda a fronteira da sensatez
e se rasteje como um verme
e se rasguem todas as vestes
é irreal a lucidez manter? (rever)
Encenar:
a menos que se aceite as máscaras
e que se vistam fantasias brilhantes
não é possível tornar-se um ser?
MOSCAS
A divisória não reflete a luz.
E a mosca que sobrevoa
a mesa impecável
constrange os intocáveis.
Seres vivos são repudiados
pois não refletem
a destreza
a Inteligência
a cultura
a opinião
que os pseudo doutos desejam.
Eis que se escolhe
a mais fácil decisão:
seguir o bonde prosaico
das pequenas
ou grandes massas.
A pureza restou esquecida
na contramão da decência.
Vende-se barato
o físico
o espírito
as convicções
as promessas
os corações.
E a mosca voejando...
A turba prefere
a mesmice da sujeira
do que a difícil arte de despertar
consciências adormecidas.
LIVRO IV
ApaixonadaMente
“Parece coisa de louco
Como explicar na verdade
Que o amor, que durou tão pouco
“Amor e desejo são coisas diferentes. Nem tudo o que se ama se deseja e
nem tudo o que se deseja se ama”. Miguel Cervantes
“Quem põe ponto final numa paixão com o ódio, ou ainda ama, ou não
consegue deixar de sofrer”. Ovídio
DOU-TE
Dou-te:
minha poesia
meu pensamento,
meus sonhos,
meus passos,
meus desejos...
Dou-te:
meu corpo,
meus braços,
meus cabelos,
meus olhos,
minha boca...
com meus beijos
intensos.
Dou-te...
simplesmente entrego-te
meu ser
por inteiro.
Vaguidão
Vaga onda,
vaga sombra,
vaga ânsia:
insânia.
Vasto mar,
vasto olhar,
vasto almejar:
sufragar.
Vago vento,
vago passeio
vago pensamento:
desfeito...
refeito...
perfeito
enredo...
De corpos,
de beijos,
de gozos intensos.
ALAR
Eis que te contemplei,
lá naquele recanto solitário,
e não pude mais de ti olvidar.
Intentei esforços extremos,
raciocinei: “não sou daqui!”
Bastou um alar de asas e,
a mim, completamente perdi:
grave privação, por isso morri.
A LA QUINTANA
Eu gostaria de escrever
um poeminha de amor...
Mas perdi as rimas!
Elas fugiram de mim
para encantar enamorados
que passeiam na praça
de braços dados
sorrindo de seu ardor.
Eu gostaria de escrever
um poeminha de amor...
Mas perdi as rimas!
Elas fugiram de mim
para encantar enamorados
que passeiam na praça
de braços dados
sorrindo de seu ardor.
ALAR
2
Ah! Eu não posso dar
asas a imaginação.
Logo surge um refrão
um bolero
uma canção
um poetar
fereo
frenético
assimétrico.
Almejaria tanto ter somente
a subversão como tema
predileto!
No entanto, surge sem
querer
o desejo de sentir
de ter
de tocar
ou falar,
mas o que sussurrar?
Sim, eu deveria ser uma
pessoa
desprovida de
criatividade
de planos oníricos
de frialdades
de ardências
de multiplicidades.
E ficaria apenas com
a inquietação das
massas...
Com a observação lisa e
lesa
deste mundo
absurdamente concreto.
Encontraria então um
fim para
esta paixão que me
desgraça.
SHAKESPEREANDO
Eu queria dizer ao teu ouvido
tudo o que no meu seio reprimo.
tudo o que no meu seio reprimo.
Mas há quem diga
que meu sentir é desatino.
Oh! Estranho e funesto fado:
A esperança já não guardo,
eis que meu amor é insensato.
Assim, apenas me ressinto...
Nunca poderei dizer ao teu ouvido
quanto querer por ti sinto.
SI NO HABLO DEL AMOR
Perdoa...
Perdoa, sim,
se não falo de amor!
Perdoa, sim,
se não falo de amor!
É que ele tem se tornado
tão raro, tão raro
que prefiro senti-lo
protegido no sótão
de minha estranha habitação
do que vê-lo morto
a pancadas
nas sarjetas imundas
de uma falsa paixão.
DO
ÓDIO
Queria poder dizer o quanto te odeio.
Quanto detesto teus castanhos cabelos,
leves ondas ao vento.
Queria dizer o quanto desprezo
teus trejeitos,
tua pele alva,
teu andar insinuante...
um conjunto quase perfeito.
Amaria gritar quanto escárnio tenho
por teus olhos de grandes cílios,
por teu sorriso amplo,
de lábios vermelhos.
Queria verter esse veneno...
Te dizer do mais puro ódio que me toma
quando me chamas por meu título,
com essa tua voz...
que minha pele fere como gelo.
Queria poder, em desespero,
sussurrar ao teu ouvido:
“Oh! Quanto te anseio!”
Não!
Não provoca meu lado apaixonado.
Tu não sabes o quanto ele
é intenso e indomável.
Não provoca meu lado apaixonado.
Tu não sabes o quanto ele
é intenso e indomável.
Logo ele precisará de um laço
para atar
pernas
braços
tronco
cabeça
e subjugar pensamentos insensatos.
Não, não provoca
esse
meu agridoce sentimento!
Logo ele parecerá um rufião,
que desejará se afogar
numa taça rubra de vinho
e levar-te com ele,
por vielas ou casas antigas,
a trilhar emoções
parcamente
reprimidas.
DO
DESGOSTO
Eu não gosto de gostar assim desse jeito
esse gostar mais do que gostando
mais do que querendo
mais do que sentindo
quase mais que vivendo
quase que morrendo...
Eu desgosto de gostar dessa forma
intensa
contrafeita
prazenteira
derradeira...
Eu não quero gostar assim desse jeito
aceitando
rejeitando
implorando
recebendo
odiando
derretendo...
Não, eu gostaria de desgostar
de gostar
de desejar
de
buscar
de ficar
olhando através da janela
querendo ver surgir
na curva da estrada
a pálida figura que
embora desejada
me crava no peito
a navalha.
LIVRO V
PoeticaMente
“O poeta
goza deste privilégio incomparável: pode a seu capricho ser o mesmo e ser outro”.
Charles Baudelaire
“Ser
poeta não é apenas dizer grandes coisas, mas ter uma voz reconhecível dentre
todas as outras”. Mario Quintana
“Eu
preferia ser vaiado por um bom verso a ser aplaudido por um verso ruim”. Victor Hugo
DREAM
Eu sonhei que era
uma maestrina
que regia o alfabeto
numa louca cacofonia.
ALIANÇA
*Para Eritania
Brunoro
Ontem choveu tanto,
que parecia
o céu poderia desabar.
E se acaso desabasse,
não seria isto a concretização
dos sonhos mais poéticos?
A terra fez-se céu,
o céu fez-se terra,
e o poeta,
que viaja entre
as duas dimensões,
agora poderá
compor seus versos
aliando a matéria
as suas ternas quimeras.
TECITURA
Sê
minha!
Sê
minha
uma
só vez
liberdade
Suave
tecitura
a
sondar
meu
corpo.
Sê
minha!
Sê
minha
uma
única
e
inextinguível vez
apenas
aventura
Para
esculpir
num
relevo claro
o
ideário de viver
plenamente
o que almejou
este
ser.
INTERMEZZO
Eu não gosto da
realidade,
eu não gosto da
fantasia;
de mundos paralelos,
de desarmonias.
Por isso, felicito-me:
“Morreu minha poesia”.
Amo quando surge
este estado sem nada:
o ruído vazio,
o trabalho ocioso...
Adoro este entremeio
em que nada vejo
sinto
ouço
escrevo
ou não viajo.
A paz faz-se silente
e meu coração
desacelera.
Enfim, o desejado
intermezzo...
Eu gosto da realidade,
eu gosto da fantasia;
de mundos paralelos,
de desarmonias.
Por isso, grito nas
praças:
“Eu não tenho medo da dor,
tenho medo é de não
senti-la”.
E detesto quando surge
este estado sem nada.
O silêncio repleto,
o repouso laborioso...
Odeio este entremeio
em que tudo vejo
sinto
ouço
escrevo
ou ainda mais viajo.
A paz faz-se amargura
e meu coração
rapidamente agoniza.
Aceito a verdade,
enfim:
Repudio este
intermezzo.
Meu coração ora é um
corcel.
Livrou-se dos arreios,
eis que nunca obterão
domá-lo,
e saiu em disparada
rumo ao infinito.
Então, ergo os braços,
com os punhos cerrados,
sussurrando ante as
estátuas:
“Que viva minha
poesia!”
Enfim, terminou o
intervalo...
Que comece o segundo
ato.
RETALHOS[3]
E
como posso adentrar teus retalhos
se
nos mesmos não posso pisar?
Esta
morfologia me consome.
Eu
desejava mesmo era
Deitar-me
deslizar
as mãos,
sentir
o verde,
enfiar
os dedos no marrom da terra,
descer
pelas campinas,
caminhar
pelos trigais...
Ali,
ali estão eles!
Deixa-me
apenas...
Teu
tapete é tão belo!
Como
não desejar mais?
Como
contentar-me apenas
com
a brevidade do olhar?
Deixa-me,
sim,
deixa-me
tirar meus velhos sapatos,
peregrinar
por tua obra,
deitar-me
sobre ela
e
senti-la dentro e fora de mim.
Permite
que eu entranhe em meu ser
a
insana morfologia desta terra sem fim.
VERSO EXALADO
E eu que desejava apenas
sentir o perfume do alvorecer,
vi-me melancolicamente
en
tar
de
cer
sentir o perfume do alvorecer,
vi-me melancolicamente
en
tar
de
cer
RENDIÇÃO
Deixa
em branco
uma
parte
desta
alva página,
por
favor.
Desejo
neste espaço
lançar
meu olhar e imaginar,
com
vagar,o que nele poderia
descobrir,
encobrir
ou, de
forma simples,
com
dois ou três traços compor.
Por
favor, nesta folha
já
quase totalmente escrita,
reserva
um espaço,
para
que de forma leve
e com
um sentir delicado
eu
possa concluir
o que
nela se revele...
Eu já
nem sei o que falo.
Já nem
sei como peço.
Apenas:
“Deixa
que eu complete o meio verso que,
no
retalho branco da página suave,
meus
olhos pressentem existir”.
EPITAFIO
Desmontando os irreais fatos,
vou traçando rabiscos tortos,
num caderno de capa preta
ou num mero papel amarrotado.
Viajo no espaço claro
buscando reencontrar outro traço
para que a poesia perfeita eu possa,
enfim, pintar em meu retrato.
Seria esta a razão de meu escrever.
Seria este o meu lindo epitáfio.
TUDO E NADA
Eu
não gosto de sofrer
de chorar
de descrer
de aniquiliar.
Eu
gosto de flores desabrochando
de
céu azul ou chumbo
de
livros cultos
de
livros bisonhos.
De
músicas estranhas
com
ou sem sinfonia:
Bluegrass
Hard
rock
MPB
Undergroud
Jazz
POP…
Eu
gosto:
de sorrisos
de crianças
de pessoas
de arte
e de gatos com bigodes.
Eu
gosto:
de viver
de sentir
de crer
de amar
de aprender.
No
mais, nada posso fazer.
Minha
vida,
feita
de idiossincrasias
me
ensinou:
vivo alegre
cantando
sorrindo...
Mas,
no fim,
ainda
tenho olhos
sentimentos
ouvidos
palavras...
E
por isso
sofro
choro
grito
odeio
e
canto o que de feio
o
mundo produz.
Sou
assim:
esperançosa
sem esperança
alegremente
infeliz
amante
cética
sensivelmente
dessensibilizada.
Sou
poeta!
Isto
explica tudo e nada.
[1] Todas as frases citadas nas folhas
de rosto de cada seção deste livro foram retiradas da internet, em sites que
contém coletâneas gratuitas (rever).
[2]
Poema inspirado em Xilografia de Francisco Stockinger, sem título, parte
integrante da coleção de obras do escultor pertencente ao acervo do MARGS
(Museu de Arte do Rio Grande do Sul), cuja exposição ocorreu de 19 de agosto a
09 de outubro de 2011.
[3] Poema inspirado na obra de arte
“Entre-Ijuis”, 2011, de Gal Weinstein exposta no MARGS (Museu de Arte do Rio
Grande do Sul), durante a 8ª Bienal do Mercosul “Ensaios de Geopoética”, edição
2011, Porto Alegre/RS.
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