Sim,
têm dias que eu acredito piamente que chegou a hora.
“Aí
está, viu? Está na hora de recompor o teu retrato”, me digo quando observo esse
rosto no espelho. Isto é, quando permito que meus olhos vejam alguma parte do rosto
que dizem ser meu.
“Ali
no cantinho do olho está se formando um pé de galinha. Na testa tem algumas
linhas marcantes (eu diria terrificantes!) de expressão. E do lado da boca tem
um tantinho de pele meio descaída”, sussurra em meus ouvidos meu lado
narcisista.
“É
madame, está na hora de passar por um procedimento de recuperação de um pouco
de juventude. Vê bem, só um pouquinho, não precisa ser radical (não te preocupa
não vou dizer aquelas palavras que detestas, aquelas que começam com ‘ci’ e
terminam com ‘rurgia plástica’), mas tens que concordar que já não és mais uma
guria e estás começando a ficar preocupada que eu sei. Então, porque não
admitir apenas uma pequena reparação, sabe, assim para levantar a autoestima?”
Eu
fico ouvindo esse canto de sereia enquanto descasco uma bergamota, ouço música,
tomo um mate e medito nas crônicas que estou escrevendo e no meu trabalho de
conclusão de pós-graduação. Ouço o barulho da máquina de lavar, secando a roupa
que não pude colocar no varal porque está ou estava ou, pelo menos pela cara do
céu, deveria estar chovendo, como um relógio que marca o tempo que está escorrendo
entre meus dedos, em geral ocupados com as teclas do computador, digitando uma
verborragia para pleitear direitos alheios.
“Quando
foi que comecei a envelhecer e não percebi? Quando foi que comecei a ouvir essa
vozinha dizendo que já estou fora de época e por isso tenho que me repaginar?”
Porque
aqui dentro, em algum lugar que eu não quero muito que outros descubram, eu não
sinto tanto assim os anos passando, embora eles possam ser bastante pesados às
vezes, praticamente impossível de carregá-los. Será que eu sou mais Peter Pan
do que Alice?
E
aquele papo de que eu não me importo muito com as expressões que a vida marca na
nossa pele? Será que é mentira? Ou apenas uma conversa cabeça para mostrar o
quanto sou culta e desapegada dessas coisas de aparência (não dizem que o que
realmente o que importa é o ser por dentro?), embora eu seja um tanto quanto
vaidosa? Claro, se não fosse eu não seria mulher, coisa de que muito me
orgulho.
E
me pego diante do espelho esticando a testa, as bochechas, me indignando com as
olheiras que estão, esta semana, mais salientes debaixo dos olhos míopes que
tenho desde a adolescência. Excesso de trabalho, noites mal dormidas, etc.,
etc., etc.. Porque eu tinha que ter o hábito de tanto ler? Se não fosse por
isso talvez eu não tivesse que usar essas lentes com aro pra esconder o meu
rosto.
Essas
coisas ficam flutuando na minha mente durante o dia, às vezes sumindo, às vezes
voltando com tão grande estardalhaço que quase saio correndo do trabalho em
direção à clínica de estética para dizer para o profissional que retifica os
defeitos genéticos ou adquiridos na nossa carne:
-Dr.!
É caso de vida ou morte! Pode cortar, esticar, esfregar, descartar e até polir
no final! Mas o sr. tem que me consertar já. Agora. Antes que eu passe dos
quarenta.
Naturalmente
que ele faria o serviço, com agradável prazer, pois eu iria forrar o seu bolso.
Mas talvez, antes disso, ele mandasse me vestirem com uma camisa especial para
evitar que eu mesma fizesse o serviço ou mudasse em seguida de ideia, tal seria
o desespero que eu iria transparecer.
Então,
o dia chega ao fim. Eu, estafada, vou parar numa livraria, tentando relaxar um
pouquinho. Fico falando coisinhas engraçadas para passar o tempo e recuperar o
fôlego para ler o livro que comprei para o tal TCC.
Na
mesa da cafeteria, bebericando um cortado pra lá de especial, passa por mim um
dos vendedores, mais jovem do que eu, com certeza, e me diz jovialmente:
-Oi,
guriazinha, tudo bem contigo?
Eu
balanço a cabeça sorrindo para responder ao gentil cumprimento.
“Guriazinha?
Eu?”, penso meio surpreendida. Pode até que não seja realidade, mas a urgência
da carnificina arrefece.
E
finalizo, respondendo a pergunta que me incomodou durante todo dia:
“Nãããoo,
não está na hora. Ainda dá para esperar pelo menos uns dez aninhos”.
E a sereia evapora.
E a sereia evapora.
4 comentários:
Que essa sereia permaneça vapor por muito tempo, assim como a tua literatura, líquida, ágil, escapando pelas mãos - como tu, do Tempo. Lindo texto.
Eu também espero Giliard. rsrsrs
Gostei do texto também e fico feliz que os leitores estejam gostando.
Abraços e grata pela visita.
Nada de se preocupar com o tempo - este senhor surdo - as cicatrizes da escrita marcam muito mais...
Oh! Com certeza Vanessa. Percebo isso toda vez que estou corrigindo meu novo livro pra publicação!!
Quão assustadoras são as palavras atemporais que saltam no papel!!!!
Obrigada pela visita.
Bjs
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