Para Juliana Braga:
Sempre é bom filosofar, quando não se pode viajar.
Ela estava vivendo a base de cafeína para conseguir trabalhar ou manter
os olhos abertos para exercer a profissão que havia escolhido. Os olhos
cansados das alíneas, dos artigos, dos incisos já estavam se fechando para a
beleza do que interpretava. Estava ficando cega, sim, dessas cegueiras que
acometem apenas uma parte da visão, aquela que é dedicada para algo que, no
momento, não nos traz satisfação.
Era isso que estava sentindo, insatisfação com a profissão que dia a
dia exercia, embora soubesse que, para os outros, ela era até útil. Realmente,
quando ganhava alguma causa para seus clientes ainda sentia certa vibração ou
empolgação. Imaginava: “Agora sim, vou voltar a sentir aquela adrenalina que
sentia quando comecei”. Mas era algo passageiro; corriqueiro também, pois, após
algum tempo, o marasmo se fazia sentir novamente e ela se desgostava de tudo,
até de si.
Então, o café servia para tentar acordar as faculdades meditativas e
interpretativas dela para que conseguisse elaborar as teses necessárias para
salvar alguns, minorar os danos de outros e, infelizmente, ter que se conformar
quando perdia uma causa e o cliente tinha que pagar o pato que não queria.
Enquanto isso acabava, por vezes, se perdendo na paisagem que surgia na
sua janela e, com isso, algumas horas preciosas de trabalho ou de descanso. Mas
tinham tantas coisas belas logo ali, depois de suas vidraças! Queria apenas um
tempinho para vê-las de perto, quem sabe acercar-se delas, tocá-las e acreditar
que ainda sentia alguma coisa além do tédio que a vida pragmática lhe trazia.
E como a vida de causídica era pragmática! Talvez até tivesse tornado a
sua ainda mais do que já comumente era. E ela tinha a sensação de que isso era
um total desperdício de sua imaginação, sentimentos, afinidades, pretensões. No
entanto, assim era a vida que escolhera, meio por predisposição genética às
brigas justas ou não, meio por empurrões da vida que vivia.
E lá longe a paisagem a deslizar pelo seu olhar (ou seria o
contrário?), como um quadro abstrato que permitia múltiplas interpretações ou
nenhuma, pois quase nada há para interpretar-se em telas abstratas, embora
digam que sim. Mas também dependia de que espécie de abstração era exposta na
tela que ela mirava.
Havia cores brancas e escuras, tons lindamente avermelhados, azuis tão
intensos quanto tempestades, algum toque de rosa e lilás e uma enormidade de
tons de verde com os quais ela se deliciava quase tanto quanto com os tons de
vermelho. E ela se perguntava mais ou menos a cada cinco palavras, enquanto digitava
uma petição inusitada para um caso corriqueiro,: “Ai, porque fui ter essa mente
assim inquieta?”
Perdeu-se por um instante numa nuance colorida que passou pela paisagem
à sua janela e que a levou a viajar para outra dimensão. Descansou o rosto na
mão e deixou-se sonhar um tempo com a liberdade amarela que flutuava a sua
frente. Ficou meditando naquela sensação de levitar sem sair do lugar, de olhar
para algo que está à frente e atrás e em todos os lados fazendo com que a
pessoa não saiba onde fixar a vista primeiramente, tantas são as coisas para se
analisar, sentir, respirar e tentar alcançar.
O resto de café esfriava na caneca a sua frente, lentamente. Ao fundo
uma música que a ajudava a se concentrar na rua em vez de no trabalho, mas pelo
menos lhe dava alguma imaginação e um pouco de perseverança para quebrar aquele
devaneio vermelho-esverdeado.
Seus dedos voltaram a correr céleres pelo teclado, digitando incontáveis
palavrórios jurídicos. Talvez se ela acelerasse a digitação terminaria mais
rápido aquela tarefa e poderia ver-se livre por alguns minutos para apreciar a
azulação do mundo lá fora. Mas o café esfriou de todo e sua mente se fechou
como uma flor do meio dia para o exercício da profissão durante a meia hora
seguinte.
Estava perdida agora, não sabia onde seus argumentos haviam ido parar,
quais artigos utilizar, que sábias palavras jurídicas iriam convencer um douto,
praticamente afastado da população, de que seus clientes tinham pleno direito
ao quinhão que suplicavam. Era já tarde.
Talvez
agora só fosse possível retomar os argumentos que tinha em seu computador de
bordo amanhã, quando sua irrequieta mente retornasse do sonho que o
quebra-cabeça multicolorido, que ela possuía em seu escritório (sua única
janela para o exterior), sempre lhe ocasionava.
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