Enfim, o corpo de Graziela foi liberado pelo IML para ser
sepultado. Era inacreditável que, desde os primeiros indícios de que o grupo
estava sendo ameaçado a morte da amiga e o enterro, somente cinco dias haviam
transcorrido.
Augusto meditava nesta situação quando o telefone tocou e Ester o
avisou que os atos fúnebres se dariam as 16h. Como fora sempre o desejo de
Graziela, o corpo seria velado na funerária de Carlos, também componente do
grupo, sem qualquer espécie de ritual religioso (ela não era uma mulher
convertida, embora alegasse que tinha lá suas crenças), com o caixão lacrado. Após
duas horas, tempo que os amigos teriam para conversar e contar piadas ao lado
de seu esquife (ela não tinha familiares), Graziela deveria ser cremada sem a
presença de qualquer pessoa.
Suas cinzas seriam imediatamente eliminadas num local desconhecido
que ela escolhera e somente Carlos sabia e deveria guardar segredo sobre isso. Estava
no contrato. Embora os amigos nutrissem uma curiosidade mórbida sobre o
assunto, nunca ousaram perguntar a amiga que destino era esse. Graziela: sempre
muito discreta. “E um tanto esquisita”, pensou Augusto. “Mas uma excelente
amiga. Vou sentir saudades”, e segurou uma lágrima que queria teimar em cair.
Ele não era conhecido por sua capacidade de demonstrar emoções, embora
todos o considerassem muito gentil e dotado de grande compaixão. Às vezes,
atitudes falam mais alto que palavras.
Augusto arrumou-se tristemente. Sabia que a amiga ia fazer uma
falta enorme, apesar dos outros a acharem excêntrica. Talvez ele fosse o que
mais iria sentir a ausência. Mas nunca mencionou o assunto a ninguém, nem a
ela. Certamente Grazi se ofenderia. Optara por ser solteira e não gostava de
nada que se tratasse de sentimentalismos.
Ele suspirou. Enfim, caso encerrado...
Quando estava enfiando a chave na fechadura para abrir a porta e
sair, ouviu um barulhinho de algo sendo empurrado por baixo da mesma. Olhou
para o chão e viu um envelope, com o nome do destinatário em
destaque.Abaixou-se rapidamente, enquanto pensava: “Ah! Não. De novo não!”.
Infelizmente, sim. Ah! Sim, era a indesejada carta que eles
estavam esperando desde a morte da amiga. Ele virou rapidamente o envelope.
Estava lacrado. Abriu a porta aos trambolhões e olhou para os dois lados da
rua. Mas não viu ninguém suspeito na área.
Enquanto os fiapos de seu cabelo na nuca voltavam ao lugar normal,
ele meteu a carta no bolso interno do paletó, fechou a porta agitado, tremendo,
olhando por cima dos ombros, com medo de ser apanhado de surpresa.
Dirigiu-se rapidamente para a funerária, que ficava perto de sua
casa, de forma que ele não precisava pegar o carro para ir até o local. Decidiu
esperar até o fim do velório para saber dos amigos se eles também haviam
recebido mais uma daquelas cartas misteriosas.
Casualmente todos os dez membros do antigo clube chegam ao local
ao mesmo tempo. Quando se viram perceberam imediatamente que todos haviam recebido
o maldito envelope. Talvez isso tenha contribuído para a tamanha pontualidade
do grupo, pois chegaram exatamente as 16h na funerária. Resolveram, embora tacitamente,
ficar em silêncio sobre o tema. Aproveitaram para trocarem abraços e beijos ali
mesmo na entrada, enquanto os pedestres passavam. Augusto sabia, assim como os
demais, que era melhor tratarem deste caso após o velório.
Quando estavam em meio a essas expressões de afeto, como para adiar
o momento de verem o caixão lacrado da falecida, Augusto percebeu pelo canto do
olho uma figura estranha deixando o local sorrateiramente. Não conseguiu ver o
rosto, pois a pessoa caminhava rapidamente, com ombros encolhidos, chapéu
enfiado até a altura dos olhos, cabeça baixa. Vestia camisa e calça pretas.
Parecia um homem de costas, contudo, Augusto não sabia precisar o que, mas algo
no seu andar revelava que também poderia ser uma mulher.
-Hei! Pessoal: vocês viram aquele cara que saiu da funerária?
Esquisito ele.
-Quem? – perguntaram dois ou três, enquanto todos se voltavam para
Augusto.
-Não olhem para mim, olhem pra ele. Aquele lá. – e apontou o dedo
em direção ao entroncamento das ruas Aquidaban e Luiz Loréa.
Mas era tarde. Quando todos viraram os rostos naquela direção, a
pessoa já tinha dobrado a esquina. – Droga, vocês não viram! – exclamou
irritado Augusto. – Mas afirmo que era alguém muito estranho.
-Tu tá vendo coisas. – disse Laura, uma moça na casa dos 25,
estudante de Psicologia e segundo Rafael, a mulher mais bonita que ele já
conhecera. – Além disso, podia ser outro cliente da funerária.
- Não, não imaginei não. E algo me diz que eu conhecia pessoa. –
defendeu-se Augusto. – Tenho certeza. Já vi em algum lugar. Mas não sei
explicar quem é ou onde vi.
- Tu sempre foi meio sensível, Augusto. Essas cartas estão mexendo
com tua imaginação, só isso. – Rafael disse. Como sempre estava debochando do
melhor amigo de Graziela, que deu um passo adiante e se preparou para tirar
satisfações daquele guri abusado.
- Gente, gente. Vamos nos acalmar. – disse Fernando apaziguador. –
Estamos aqui por causa da Grazi. Não é hora de bobagens. E tu, Rafael: deixa o Augusto
em paz, pelo menos hoje.
- Ok, papai. – Rafael falou ainda mais debochado. – E desculpa ai Augusto.
Mas se a Grazi estivesse aqui ela riria também. Afinal não era isso que ela
queria? Que seu enterro fosse uma piada? – Ele finalizou entre sarcástico e
magoado. Todos baixaram os olhos.
Rafael era o mais novo do grupo, tinha 22 anos, e todos sabiam que
ele tinha se livrado de um sério problema por causa da ajuda que Grazi, que
fora sua professora alguns anos antes. Eles sabiam que ele a via como sua
segunda mãe. No entanto, nunca souberam no que ela o havia ajudado.
- Vamos entrar, gente. – Alexandra, Alex para o grupo, falou. –
Está na hora de acabar com isso de uma vez. Ela não gostaria que perdêssemos
muito tempo chorando as pitangas. – sim ela falava esquisito, era muito franca,
prática e corajosa, talvez fruto da sua profissão: era enfermeira. No entanto,
nos últimos dias não vinha se sentindo assim muito audaz. Já tinha decidido,
após o funeral iria tirar umas férias longe de Rio Grande.
Infelizmente, algo a impediria de concretizar seus planos.
O velório ocorreu como Graziela havia determinado. Após as duas
horas determinadas, Carlos se preparou para recolheu o caixão, e levar os
restos mortais para o crematório.
Inexplicavelmente apenas os membros do grupo haviam comparecido ao
velório, embora todos soubessem que a falecida era uma professora muito
estimada nas comunidades em que lecionava, o que era confirmado pelas várias
coroas de flores que estavam no local.
Augusto perguntou a Carlos se ele sabia algo sobre a ausência dos
demais colegas de trabalho e alunos de Graziela. Recebeu como resposta: ela
disse que somente eles, os membros do grupo, deveriam estar presentes na
funerária. Todos na escola haviam sido orientados a não comparecerem, pois isso
não beneficiaria ninguém.
- Mas porque ela planejou seu velório desta forma e com tanta
antecedência, Carlos?
- Isso ela pediu para que eu explicasse para vocês depois que
fosse cremada, o que ela pretendia que ocorresse quando morresse de morte
natural. Infelizmente, seu homicídio apressou as coisas. Mas tudo a seu tempo, Augusto,
tudo a seu tempo. Agora preciso ir. E vocês também. – Carlos deu-lhe as costas
e foi tratar da última e estranha vontade de Graziela.
Todos se dirigiram para a saída. Rafael estava mais deprimido e
sarcástico do que quando havia discutido com Augusto. Os demais estavam
pesarosos, contudo parecia que alguns se sentiam estranhamente aliviados.
Embora não tivessem tratado diretamente do assunto, durante o
velório, combinaram de se encontrar na casa de Fernando, as 20h, para falarem
sobre seus assuntos particulares. Após as despedidas de praxe, cada um rumou
para um canto da cidade. Precisavam ler suas cartas antes de se reverem para
buscarem uma forma de se livrarem do não poderia ser discutido e para achar uma
solução para o pequeno problema que estava enfrentando.
As 19h30 quase todos os já estavam reunidos na casa de Fernando,
pois as cartas foram mais estranhas do que se poderia esperar. Só faltava Carlos,
que ainda não dera sinal de vida, talvez estivesse terminando de por em prática
os esquisitos planos funerários de Graziela.
A conversa era entrecortada por momentos de silêncio e algumas
breves conjecturas do que poderia estar ocorrendo. No entanto, ninguém se
atrevia a começar a falar abertamente sobre o assunto. A demora de Carlos
servia, ao mesmo tempo, de empecilho e de desculpa para que eles não atacassem
diretamente o problema.
Por fim, o exótico relógio de carrilhão de Fernando tocou as 20h.
E nada de Carlos chegar. Esperaram mais 20 minutos comendo uns petiscos que o
dono da casa havia providenciado. Mas o amigo não apareceu. Estavam todos
calados e temerosos. Augusto tentou o celular do agente funerário, mas só caía
na caixa postal. O silêncio recaiu sobre todos, pois já estavam imaginando o
que ocorrera. Ninguém se olhava.
TRRRRRRRRRRIIIIIIIMMMMMMMMMMMMMM
Todos saltaram em suas poltronas. A campainha havia sido tocada.
Eles soltaram um suspiro de alívio e se levantaram para dar as boas vindas Carlos
e lhe xingarem pelo atraso, o que, de certa forma, sempre fora o seu costume.
Agora lembravam.
Mas quando Fernando voltou da porta, estava pálido. Carregava algo
na mão, mas não conseguia dizer nada. Os amigos o olharam preocupados.
- Cara o que houve? Que cara é essa? – Rafael perguntou sem
deboche desta vez.
Fernando sentou-se na poltrona mais próxima ainda sem nada falar.
Depositou uma pequena caixa na mesa de centro e jogou sobre ela uma folha onde
se percebiam letras coloridas, recortadas e coladas no papel. Ele simplesmente
apontou pra caixa e disse:
- Leiam o papel, depois olhem aquilo. – e silenciou completamente.
Mas como de praxe, as pessoas nunca fazem o que lhes é dito. Augusto
o retirou a tampa da caixa e jogou a mesma longe, movimento acompanhado pelos
demais. Quando eles voltaram a olhar o objeto sobre a mesa todos viram o que
estava dentro: um olho verde.
Estava depositado cuidadosamente sobre um pedaço de algodão.
Nenhum dano ao globo ocular. Via-se um pedaço dos nervos óticos que ligavam o
globo ocular ao centro nervoso da pessoa que tivera tal órgão extirpado. Quem
fosse especialista notaria que os mesmos foram cortados precisamente, como um
bom cirurgião faria. Algumas letras foram dispostas delicadamente em torno do
olho, formando a frase:
“Pertence a Carlos”.
Rafael se recostou na parede e soltou uma risada nervosa. Augusto
correu para um canto e vomitou. Ester ficou parada no mesmo lugar, encarando
aquele olho, perplexa. Alex saiu a cata da tampa para cobrir aquela aberração,
os outros cinco membros do grupo simplesmente colocaram uma mão sobre as vistas
e disseram, em uníssono: “Meu Deus”, enquanto e sentavam lentamente nas
poltronas em que estavam antes.
Alex voltou correndo com a tampa e cobriu o olho frio, falando:
- Calma, gente, é apenas um olho. – para ela era fácil ver assim,
afinal era enfermeira.
- Um olho!? Um olho, Alex!? É o olho do Carlos. Ele pode estar
morto agora, por causa disso! – Exclamou Paulo.
- Dificilmente ele morreria por causa disso, Paulo. Claro se
houver uma infecção... – Alex falou profissionalmente. Mas percebeu que não
estava ajudando. – Não vamos nos precipitar. Quis apenas dizer que é possível
extirpar um olho e a pessoa não morrer. É por isso que devemos torcer para que
ele ainda esteja vivo. Afinal, esse olho pode nem ser dele.
Paulo se sentou ainda mais indignado, mas resolveu se calar. Alex
não iria ouvir nada além de argumentos médicos. Foi quando Fernando abriu a
boca e disse:
- Eu falei para lerem a carta antes de verem a caixa, eu falei.
Mas ninguém me escuta. – tomou um gole de água. Sua garganta estava
extremamente seca. – Vou ler para vocês então. Diz assim:
“Esse é um pequeno incentivo para que vocês comecem a tratar nosso
assunto com mais interesse e respeito.
Seu amigo Carlos está comigo. Certamente foi um pouco doloroso
para ele ter que me entregar de boa vontade seu belo olho. Mas ele viverá.
Isto é, se vocês começarem a decifrar as minhas pistas com mais
rapidez.
Não é mais tempo de guardarem segredos. Portanto, tratem de ler suas
cartas agora.
Vocês têm apenas 120 minutos, a contar das 20h, para descobrirem a
pista que lhes entreguei, ou então, mais um funeral terão para acompanhar
Uma dica, pois sou pródigo com quem tem pouca inteligência: duas
apenas são as mais preciosas. Como um par de olhos”.
Todos começaram a falar ao mesmo tempo, dizendo que não tinham
nenhum segredo para revelar, querendo chamar a polícia, outros quietos
matutavam que não iriam fazer nada. Se Carlos tivesse que morrer, que morresse,
amanhã iriam embora de Rio Grande com certeza.
Mas Fernando interrompeu a todos e disse:
- Eu não terminei. – todos fizeram silêncio. O que ainda faltaria?
– Nosso amigo, encerra dizendo que não adianta planejar fugir, chamar a
polícia, pois ele tem um segredo de cada um. Ele sabe que cada um de nós
praticou um crime e mesmo que escape dele, não vai escapar das autoridades. Eu
não sei quanto a vocês, mas eu não quero ninguém bisbilhotando minha vida.
Então, ou vocês mostram suas cartas ou eu arranco elas de vocês.
Não se sabe se foi a atitude inesperada de Fernando, geralmente
tão calmo, ou o medo de que os outros descobrissem seus segredos, mas o fato é
que todos enfiaram suas mão em bolsas, bolsos ou carteiras e jogaram as cartas
que haviam recebido sobre a mesa de centro.
- Alex, retira essa caixa horrível daqui. – Fernando comandou. –
Vamos usar essa mesa para tentar entender o que esse desgraçado quer e
descobrir a maldita pista antes que seja tarde.
A caixa, com o olho verde, foi parar na geladeira do anfitrião.
As cartas foram finalmente abertas e espalhadas sobre a mesa, mas,
para o desencanto de Fernando elas estavam em branco, exceto a sua.
- Vocês estão brincando comigo? – ele gritou. – O cara não falou
que não podemos esconder mais nada uns dos outros? Cadê o restante das cartas
de vocês?
A gritaria recomeçou, uns diziam que só tinham recebido aquilo,
outros diziam que ninguém ia ver a sua parte escrita da carta, que não era somente
Fernando que tinha direito de ter sua vida protegida.
Foi quando Rafael gritou:
- Calem a boca! Não importam os segredos, pelo menos por enquanto.
Importa a pista. Temos que achar a pista senão o Carlos vai morrer! Ou vocês
não se importam com isso?
E o relógio bateu as 20h30 minutos, levando todos a pararem para
pensar no que Rafael havia dito. Ele tinha razão.
- Então? O que vai ser? – Ele perguntou.
Todos admitiram que a parte escrita havia sido sonegada dos
outros. Contudo, juraram sobre os cadáveres de seus pais que a folha separada
estava em branco, menos a de Fernando, que continha uma estrofe que não fazia
sentido.
Ele mesmo chamou atenção para esse fato e leu o que dizia:
“Quem diria?
As Graças nem sempre
Espalham bênçãos e alegrias.
Seria falta de zelo?
Ela foi tarde.
Ainda era aquela que bendizia?”
- O que isso quer dizer? – Fernando questionou passando a folha
para os demais, para que eles a analisassem e dessem suas opiniões.
Entretanto, os nervos a flor da pele, a adrenalina pela rápida
passagem do tempo, o medo, as animosidades que estavam surgindo, tudo isso
começou a atrapalhar o raciocínio daqueles que antes faziam parte de um clube
que visava justamente desvendar esse tipo de coisa. Ninguém conseguia atinar
com o significado do que estava escrito.
Fernando olhou ansioso para o relógio. 20h45. O tempo estava
escoando rapidamente. Eles não iriam conseguir solucionar o enigma a tempo se
continuassem se revezando em olhar para o papel original. Então, ele decidiu:
- Peguem essas folhas. Rafael vai ditar o que está escrito na
carta. Assim todos podem ler o que me foi endereçado. Quem tiver alguma ideia
passa para os demais.
O ditado foi realizado e cada um começou a tentar decifrar a
estrofe, enquanto Rafael ficou olhando a carta original. Ele percebeu que havia
algo estranho nela, mas não conseguia perceber o que era.
Os demais trocavam opiniões entre si. Achavam que a referências as
Graças poderia se tratar de algo mitológico, outros diziam que era impossível
entender a mensagem, o que gerou novas discussões que levaram a perda de
minutos preciosos.
Até que Rafael disse:
- Já sei! Descobri do que se trata.
Todos voltaram seus rostos para o jovem, esperando que ele
revelasse o que descobrira.
[continua]
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