De manhã cedo, antes de tudo, pensou:
“Eles nunca pedem perdão. São muito estranhos na
verdade, e mesmo assim...”
O inverno havia prometido partir, mas voltou em
forma de chuva num domingo de antevéspera de primavera.
“Como ele ousava quebrar seu compromisso anual?”
– ela se perguntou ofendida, tentando dar a volta nos pensamentos que estavam
circulando em sua mente naquela manhã.
Amanhã será segunda, dia de trabalho,
provavelmente apagado pelas nuvens que estariam encobrindo o primeiro sol da
primavera, que não ia poder surgir com a revolta invernal tardia.
Aliás, quase tudo nesse continente acontecia
meio tarde: tratados de paz, rebeldias, filas, ônibus, estações climáticas,
refeições, amores... ah! Os amores que tardam e somente afligiam as almas
tranquilas com seu atraso injusto!
No entanto, como seria se isso não acontecesse?
Ou seja, o que aconteceria se continuasse a ser sempre tarde, sempre domingo,
até o domingo da semana que vem, e da outra e da outra, e assim sucessivamente
até o final das eras, que já não eram ou não seriam, ou deixariam de ser por
uma situação de causa e efeito decorrente das mudanças que estão ocorrendo no
espaço, no tempo, na velocidade dos átomos e da luz?
E se o ontem não existisse mais e o depois do
amanhã não vier? Se tudo agora se resumisse a um fim de tarde chuvoso,
precedido por uma manhã melancólica, que se prolongasse por todos os dias a
frente, sem nunca chegar ao fim?
Um ciclo repetindo o mesmo ciclo, dentro de
outro ciclo que não se interromperia; ao contrário se reproduziria
indefinidamente, mais ou menos como aquele conto, onde alguém diz: “[...]Toda a cidade está metida até as
orelhas em sua vigília, sem ponteiros nos relógios, com medo de acordar pela
manhã e descobrir que é domingo para sempre”1.
Será que
alguém perceberia essa repetição constante e imutável? Será que alguma pessoa
conseguiria fugir dela ou tentaria quebrar o ciclo com uma invenção maluca que
acabaria por destruir a lei espaço-tempo, tornando possível dobrar a ambos e
finalmente proporcionando aos humanos a criação de viagens temporais, embora a
teoria da relatividade diga que isso é uma possibilidade impossível?
Então, a vida passaria do tédio da repetição
para uma correria entre o futuro, presente, passado, com apenas um aperto num
botão de retroagir ou avançar num pequeno controle remoto que todos dariam um
jeito de possuir. Quem sabe até se tornasse possível pausar em um momento
alegre ou triste, apertar o play e deixar o tempo correr no passo da
normalidade, ou viver em ‘slow motion’ para tentar evitar que o peso das horas
levasse a vida mais depressa.
Ou, para
aqueles que preferem a segurança da monótona reprodução dos mesmos
acontecimentos diariamente, haveria a opção de continuar vivendo eternamente o
ciclo dentro do ciclo.
“Repetição: estabilidade cotidiana assegurada é
felicidade comprovada”, seria o ‘slogan’ do criador do invento, que,
certamente, se tornaria muito rico e viveria uma vida de nababo até ser
consumido por sua própria criatividade.
Então, o inverno tinha resolvido dar as caras
novamente. E amanhã seria segunda. O trabalho a esperava com a tranquilidade de
um cronômetro inquebrantavelmente quebrável.
Enquanto o amanhã não chegava, ela se entregava
a essa estagnação meditativa sobre o tempo e o espaço na cozinha fria,
bebericando uma xícara de café preto, bem a seu gosto: duas colheres de café e
uma de açúcar. Da caneca saia uma fumacinha em espiral, que espalhava o cheiro
da bebida pelo recinto, invadia seu nariz e aumentava seu desejo por mais um
gole, apenas mais um gole.
Entretanto, como de praxe acontece nesses
momentos de fluidez mental, ela acordou a meio nesse instante. E sentiu que
parecia uma televisão fora do ar, cheia de estática e chiados. Viu que seu
corpo estava tremeluzindo quase na mesma frequência que a estática televisiva.
Suas mãos mal conseguiam segurar a caneca de tanto que sumiam e reapareciam.
Levantou, com pernas bambas, se dirigiu ao banheiro e, assustada, notou que
quase não via seu rosto no espelho de tão desfocado que estava.
E ela se perguntou: “Quantas xícaras de café eu
tomei nesta tarde chuvosa? Cinco, seis? Quantos grãos de café equivalem ao
número de xícaras que eu bebi? Por que eu sempre esqueço que não posso
exagerar?”
Foi quando ela viu uma sombra se alongando pela
parede. Quando ela se virou deu de cara com um grão de café preto e luzidio que
fugiu do saco que o guardava. Quanto mais ela o olhava, mais ele crescia, até
ficar com três metros de altura. De repente ele abriu uma bocarra enorme e a
engoliu por inteiro, enquanto ela gritava de terror.
É, algumas pessoas, não tem noção do perigo
mental e físico que correm por gostar tanto desta bebida provinda do continente
africano. O café tem um efeito estranho sobre algumas pessoas.
O café é esquisito por natureza.
E seus grãos, pretos, luzidios, cheirosos e
inebriantes, não importa o que façam, nunca, jamais pedem perdão.
Nota da Escritora
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