terça-feira, 1 de janeiro de 2013

CLARICE E EU


Eu nunca consigo ler Clarice Lispector de uma enfiada só. Ela me cansa e me descansa, me acalma e me agita numa imutável sensação de vai e vem. Clarice pesa em mim como a pedra do caminho que não é possível remover e ela me deixa leve, como as palavras malditas que eu nunca consigo redigir.

Ela é tão eu e eu sou tão ela que chega a me irritar. Nada de parentescos, nem afinidades. Apenas um ódio meio cru por ela já ter dito o que eu queria escrever. E eu não a imito, não. Eu já rabiscava letras de meia boca antes mesmo de saber que ela existia. Nada temos em comum, a não ser um jeito meio parecido e diferente de dizer as coisas.

E por isso eu a leio e sublinho frases em seus livros que para outros teriam sentido diferente, mas que eu sei bem o que ela não quis dizer. Não, nunca serei “Clarice” e ela nunca será “eu”, mas há um desencontro entre nós e isso quase nos tornou irmãs. Uma que nasceu séculos antes e morreu de dor. Depois nossos pais, que não eram os mesmos, me pariram e me contaram a sua história. Ai nos encontramos e nos fizemos uníssonas em uma doce e malévola desunissonidade.

E foi a música das teclas minha e dela que nos separou. Somos eternamente inimigas que convivem salutarmente uma com a outra. Ela nunca será “eu” e eu nunca serei “Clarice” e não há como nos comparar tão diversamente iguais somos. Ela diz tudo e nada e eu escrevo apena o meio.

Então, meu coração se desloca para algum lugar entre meu estômago e meu diafragma. Está agora ali, comprimido entre os dois órgãos, sem bater normalmente, acometido de descompassos involuntários como os soluços que, às vezes, tomam uma pessoa de assalto. E como se livrar do soluço ou do coração descompassado?

Eu não sei. Ela pensou que sabia, mesmo afirmando que não compreendia nada. Era uma desconhecida para si mesma, assim como eu a conheço tão bem. Então conduzo meus passos com vagar e desconfiança enquanto eu a leio, porque sei que ela planejou escancaradamente me enganar, pois acreditava que eu clamaria ao mundo que sou daquelas pessoas que sabem, entendem e percebem tudo sobre o “outro”, mesmo sem saber nada sobre si.

Também por isso eu não respondo nada ante as acusações que ela me faz a respeito da minha falta de modéstia literária e psicológica; da minha falta de sabedoria íntima e interpessoal; da minha crença arraigada de que algo existe além de nós mesmos e dela e eu. Eu não revido seu sorriso de deboche contras as minhas verdades e mentiras, porque bem sei que, quando ela faz isso acaba rindo de si mesma também, embora ela nunca admita.

Então eu apenas leio Clarice com um senso de urgência de vida e de morte, para que ela não me mate antes que eu escreva o que ela não teve coragem. 

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