Eu nunca
consigo ler Clarice Lispector de uma enfiada só. Ela me cansa e me descansa, me
acalma e me agita numa imutável sensação de vai e vem. Clarice pesa em mim como
a pedra do caminho que não é possível remover e ela me deixa leve, como as
palavras malditas que eu nunca consigo redigir.
Ela é tão
eu e eu sou tão ela que chega a me irritar. Nada de parentescos, nem
afinidades. Apenas um ódio meio cru por ela já ter dito o que eu queria
escrever. E eu não a imito, não. Eu já rabiscava letras de meia boca antes
mesmo de saber que ela existia. Nada temos em comum, a não ser um jeito meio
parecido e diferente de dizer as coisas.
E por
isso eu a leio e sublinho frases em seus livros que para outros teriam sentido
diferente, mas que eu sei bem o que ela não quis dizer. Não, nunca serei “Clarice”
e ela nunca será “eu”, mas há um desencontro entre nós e isso quase nos tornou
irmãs. Uma que nasceu séculos antes e morreu de dor. Depois nossos pais, que
não eram os mesmos, me pariram e me contaram a sua história. Ai nos encontramos
e nos fizemos uníssonas em uma doce e malévola desunissonidade.
E foi a
música das teclas minha e dela que nos separou. Somos eternamente inimigas que
convivem salutarmente uma com a outra. Ela nunca será “eu” e eu nunca serei “Clarice”
e não há como nos comparar tão diversamente iguais somos. Ela diz tudo e nada e
eu escrevo apena o meio.
Então,
meu coração se desloca para algum lugar entre meu estômago e meu diafragma. Está
agora ali, comprimido entre os dois órgãos, sem bater normalmente, acometido de
descompassos involuntários como os soluços que, às vezes, tomam uma pessoa de
assalto. E como se livrar do soluço ou do coração descompassado?
Eu não
sei. Ela pensou que sabia, mesmo afirmando que não compreendia nada. Era uma
desconhecida para si mesma, assim como eu a conheço tão bem. Então conduzo meus
passos com vagar e desconfiança enquanto eu a leio, porque sei que ela planejou
escancaradamente me enganar, pois acreditava que eu clamaria ao mundo que sou
daquelas pessoas que sabem, entendem e percebem tudo sobre o “outro”, mesmo sem
saber nada sobre si.
Também por
isso eu não respondo nada ante as acusações que ela me faz a respeito da minha
falta de modéstia literária e psicológica; da minha falta de sabedoria íntima e
interpessoal; da minha crença arraigada de que algo existe além de nós mesmos e
dela e eu. Eu não revido seu sorriso de deboche contras as minhas verdades e
mentiras, porque bem sei que, quando ela faz isso acaba rindo de si mesma
também, embora ela nunca admita.
Então eu
apenas leio Clarice com um senso de urgência de vida e de morte, para que ela
não me mate antes que eu escreva o que ela não teve coragem.
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