“‘De amarga basta minha
vida’, já dizia minha avó”, declarava incessantemente um senhor idoso, sentado
junto ao balcão da padaria, bebericando seu café de praxe.
E resmungava para si mesmo,
embora todos o ouvissem: “Deixa ela, deixa ela. Ela ainda tá na idade da
ilusão. Eu? Eu não. Já passei disso. Sou de outra classe. Deixa ela, ela tá na
idade da ilusão.” Me perguntei se ele estava falando da garçonete que lhe
atendeu sorrindo ou se de alguma menina que conhecera em outros tempos. Não sei
definir. Tudo nele era diferentemente estático e transitório.
E o senhor ria e batia
palmas, falando com as atendentes que o conheciam já, de outros cafés, horas,
dias e épocas. “E ainda tenho três pontos para bater hoje”. Ele contava nos
dedos: “A outra padaria, a lotérica e...”. Não lembrava qual era o último. “Mas
são outros três pontos pra bater”.
Eu pensei: “O que ele vai
fazer em outra padaria?” Talvez encontrar outra menina que ainda vivia na idade
da ilusão...
Uma atendente trouxe sua
encomenda de pão. “Tem gente que é tão séria”, ele disse e pensei que me olhava
e falava de mim. “Sou?”, eu o interroguei em silêncio. Me peguei tentando
sorrir naturalmente para afastar a má impressão. Mas ele já terminara seu café
e estava saindo, encurvado, arrastando seus sapatos atemporais pelo piso da
padaria.
“Eu também não estou mais na
idade da ilusão, nem na da desilusão total. Contudo, já não carrego muitos
sonhos”, pensei... séria? Sorri da perspicácia envelhecida do senhor que deixou
o estabelecimento para ir bater mais três pontos durante sua caminhada
solitária.
Gostaria de ter falado com
ele, ouvir suas longas histórias de velho, alguns diriam, amalucado, de ter o
mesmo despudor que lhe permitia falar o que pensava, bater palmas ou rir alto,
mesmo que rissem dele. Ele havia chegado à idade em que a pessoa não se
preocupa mais com míseros detalhes.
Assim como esse menino, que
sentou na mesa ao lado e, de repente, agora resolveu puxar papo comigo. Deve
ter cinco anos no máximo. Mesmo sendo perigoso, ele está na idade de não se
importar com quem puxa conversa. Isso me preocupa um pouquinho, porque eu
ensinaria meus filhos a não falarem, nunca, com estranhos.
No entanto, isso seria
totalmente benéfico? Impediria efetivamente que algo de ruim acontecesse com
eles? Não sei, as vezes me parece que o excesso de desconfiança acaba
subtraindo alguma coisa das crianças, alguma coisa imprescindível, mas que eu
não consigo decifrar totalmente. Será porque eu nunca fui uma?
E ele, confiantemente, me
pergunta se preciso de ajuda, o que eu estou fazendo àquela hora na padaria, se
eu trabalho e no que, porque eu não desenho que nem ele, numa sucessão de
questionamentos que me divertem, mas procuro responder com seriedade. Devem ser
perguntas importantes para o guri.
Ele conta sorrindo que
também gosta de vídeo game, mas que o dele está estragado, que ainda não sabe
ler e finaliza com mais uma pergunta: “Que livro azul é esse em cima da mesa?”
Como explicar para um ser tão pequeno o que é um processo, que a soma de todos
os problemas que um adulto pode ter e não consegue resolver acaba se tornando
um livro azul para que um juiz, com bom senso ou carente deste, determine a
solução ou não?
Então eu explico que o tal
livro, se chama processo, que quando uma pessoa tem um problema ela diz isso
para uma pessoa chamada juiz, junta um monte de folhas nesse livro e depois o
juiz diz como o problema vai ser resolvido. E olho para ele, tentando saber se
ele compreendeu o que eu disse. Ele me olha e diz: “Ata”. Acho que a luzinha
que vi em seus olhos podem significar que ele compreendeu algo do que eu
disse... ou não.
Logo ouço o chamado de uma
senhora e um pedido de desculpas pelo incômodo, pois seu filho é muito
conversador. E eu digo que não foi nada, que o papo estava muito bom. “Quem
dera alguns pais deixassem que seus filhos fossem mais conversadores”, penso,
enquanto o menino começa a se afastar.
E ai me lembro de perguntar
o nome dele. Só agora. Mas é que eu nunca fui muito boa em estabelecer novos
relacionamentos, ainda mais com velhos resmungadores ou meninos que perguntam o
que são livros azuis. Ele me responde e sai correndo atrás da mãe, enquanto
agradeço a conversa e digo que foi um prazer conhece-lo. Ele volta correndo e
diz que também gostou de me conhecer. E isso, essa pequena frase me deixa tão
contente que nem sei explicar o porquê.
E Iago, não o de
Shakespeare, mas esse menino, levando seu pequeno e vibrátil corpo, sua
boquinha conversadora, que, na sua inocência, me ofereceu ajuda, pois parece
desejar ser um herói, foi embora rapidamente, enquanto eu o observava sorrindo
com o desfecho da nossa conversa.
“O que será que te fez falar
comigo, doce Iago?”, fiquei pensando quando ele desapareceu totalmente da
padaria. “Por que querias me ajudar?” Tentei imaginar minha face, como ela
estaria quando o pequeno mancebo me interpelou. Eu estaria parecendo desolada,
triste, cansada, desiludida? Ou ele, na ilusão de que era um pequeno
cavalheiro, apenas quis chamar a atenção para sua bravura?
Ah! Iago, tu já te foste e
eu continuo sentada na mesma mesa, com meu livro azul, terminando meu
cappuccino, enquanto o tempo transcorre lentamente e não encontro palavras para
entender tudo isso.
Agora só resto aqui dividida
entre o despudor amalucado da velhice e a cândida inocência da meninice. Quem dera
eu pudesse ter ambas, sem que, ante a opinião prosaica, me tornasse ridícula.
3 comentários:
Vim lê o seu conto. Achei interessante. Felicitações, minhas.
Caro José Maria Souza Costa:
Grata pela leitura e comentário.
Adriane
Adriane, só agora pude ler seu conto e garanto a você que foi um excelente momento de leitura. Já no primeiro parágrafo, fiquei com a curiosidade aguçada, querendo entender de onde o idoso trazia as ideias e as lembranças. Você foi amarrando fatos e personagens de maneira tão natural que a trama foi conduzida de forma brilhante e clara. E conseguiu abordar os dois extremos da vida das pessoas (a infância e a velhice), mostrando o que de mais importante há nos dois momentos: a espontaneidade e a autenticidade no comportamento e a pureza natural do ser humano. Adorei o texto claro e bem arranjado! Muito agradecida pela oportunidade da leitura! Quero ler sempre as suas criações! Abraço!
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