“Finalmente nos
encontramos! Tu demoraste tanto! Pensei que não te veria tão cedo”, ela disse
(ou apenas pensou que disse?) quando viu sua amiga. “Onde estavas? Como tens
passado? Tem tanta coisa que eu quero te contar... não sei nem por onde
começar. Vou pelo princípio...” Foi interrompida por um suspiro de cansaço de
sua visita, que desabava em uma cadeira a sua frente, com a testa suada e uma
expressão de tristeza e apreensão em seus olhos.
“O que aconteceu? O que
houve contigo?”, quis perguntar, mas não achou as palavras certas. Olhou-a
prolongadamente, esperando algum sinal que indicasse que podia lhe perguntar,
ou dizer algo. Contudo, os barulhos eletrônicos que ouvia a sua volta, os
inúmeros bips, sons de aparelhos que liberavam alguma espécie de gás, os ruídos
vindos do exterior, lhe atrapalhavam a concentração, deixando-a confusa,
temerosa, espantada ante a situação que presenciava. Havia um misto de temor,
pena e ansiedade em seu rosto. Algo que ela não podia decifrar. Suas mãos se
encontraram.
“Como estás fria, eu
diria gélida. Não vais me dizer o que houve? Não precisas ficar preocupada, eu
vou entender...”, ela tentou tranquilizar sua amiga. Mas a expressão em seu
rosto não mudou. Ao contrário, lágrimas surgiram em seus olhos, enquanto ela
passava a segurar sua mão num aperto desesperado.
“O que tu fizeste?
Porque não me disseste o que estava ocorrendo?” – ela perguntou em voz elevada,
sem perceber tal fato. Mas não obteve resposta. A expressão continuava a mesma.
Alguém de uniforme branco entrou no quarto neste instante e lhe aconselhou a
falar mais baixo.
“Se bem que no estado
em que ela está, é mais provável que não te escute... Sabe, não há provas
cientificas de que alguém assim escute. Portanto, seria um desperdício de
energias ficar falando...”
“Não, não preste
atenção ao que ela diz. Fala comigo, diga o que houve, porque estás tão
aflita...” Novamente não houve resposta. Mas sua amiga continuava a olhá-la com
a mesma tristeza estampada na face. “Qual é? Tu nunca acreditaste no ‘senso
comum’, fala comigo, me explica o que ocorreu que eu prometo ajudar. Eu sempre
te tirei das confusões em que te metias, lembra?”
“Ela parece tão
pálida... Será que ela está sentindo alguma dor?” – ela perguntou para a moça
de uniforme branco. As duas olharam para ela em silêncio.
“Provavelmente não... –
foi a breve resposta da moça “branca”. Ela era branca em todos os sentidos:
suas roupas, seus sapatos, suas meias-calça, sua pele... parecia que ela não
via a luz solar a muitos séculos.
Ela ouvia a conversa
entre as duas com incredulidade pelo fato de ambas parecerem que não percebiam
sua presença ali, que não se importavam em ficar falando enquanto ela as
escutava trocarem opiniões sobre sua pessoa como se ela estivesse ausente,
distante, intocável. Parecia que elas a tornavam uma coisa, um objeto: sem
sentimentos, sem sensações, um ser sem ser.
“Escuta, tu já está
começando a me irritar. Eu estou aqui, tens que falar comigo e não com essa ai,
que nem me conhece, nem a ti. Não sabe das confusões em que estivemos, da nossa
amizade, dos nossos encontros e desencontros, das vezes que nos ajudamos ou
prejudicamos, enfim, da nossa história. Fala comigo! Não com ela, não com ela”,
ela gritou, embora sua boca parecesse muda.
“Nada, nenhum
sinal...Ela não percebe mesmo, não é?” – Ela comentou com a moça “alva”. Esta
apenas mexeu os ombros, como se a constatação fosse por demais óbvia.
“Daqui a pouco o
horário de visitas acaba...” – a moça finalizou saindo do quarto.
“O que tu foi fazer?” –
ela interrogou a amiga em voz baixa, próxima a seu ouvido. Sabia que nada
adiantaria, mas ainda pensava que...
“Nada. Eu não fiz
nada...”, ela tentou argumentar.
“...se jogar na frente
de um carro, assim, sem mais nem menos. Tu tinhas dito...”
“Não é verdade!!!”, ela
urrou. “A história não é bem essa. Eu tropecei, eu caí. Foi um acidente!”.
“... que estava tudo
bem, que tinhas conseguido superar. Mas agora isso! No mínimo tentarias me
convencer que foi um acidente, como daquela vez em que os teus pulsos
apareceram machucados...”
“Aquilo foi diferente.
Eu não tentei dessa vez, eu juro”, ela retrucou desesperada, mesmo que
soubesse, bem no fundo de sua consciência que estava novamente tentando enganar
a amiga...ou seria a si mesma?
“...e eu acreditei. E
agora tu está ai, nessa cama, jogada, ninguém consegue falar contigo, tu não escutas...
Aliás, nunca escutaste, mesmo. E eu não sei por que ainda me importo. Ela deve
ter razão. Nem sei por que estou falando contigo. Tu já não sentes nada, nem
ouves ou vês.” – Ela suspirou resignada, embora triste. Levantou-se.
“Não é verdade, não é
verdade!”, ela berrou e esmurrou a cama, embora parecesse imóvel.
“Agora tenho que ir.
Amanhã passo aqui de novo.” – ela balançou a cabeça, rindo tristemente. “Com
quem estou falando afinal?” – exclamou em voz baixa, mas audível. Deu uma
última olhada em sua amiga. Tocou o lençol branco, o braço frágil, a mão
macilenta. Saiu porta afora sem dizer adeus.
Enquanto isso, o corpo
sobre a cama, rodeado de aparelhos, o corpo que não se mexia, gritava
surdamente em desespero: “Não vá, não vá!!! Eu ainda ouço, sinto, vejo...Por
favor, fala comigo, fala comigo, fala comigo...”.
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