Se eu pudesse eu
devoraria um alfabeto inteiro para amainar essa minha fome. São necessárias
tantas letras, tantas palavras para descrever o que vai pelo mundo a fora ou
interior. Seria preciso até criar algumas novas para melhor definir o que se vê
ou o que apenas se vislumbra.
Eu devoraria todos os
alfabetos do mundo, misturando todas as palavras existentes ou ainda por virem
a existir para poder contar o que eu vi, o que não vi, o que eu quis ou do que
abri mão.
Uma a tartaruga segue
nadando no canalete, espiando a vida sobre a água na qual navega e que é
insuportavelmente poluída quase sempre, ou todos os dias. E eu vou perseguindo
o bicho, tentando entender como ele consegue respirar ali, logo ali, naquele
pequeno riacho negro, embora aparentemente límpido. Tentando entender como ele
continua vivendo, apesar dos resíduos que precisa engolir durante seu nado
sincronizado. A tartaruga se sente acuada, perseguida e se pergunta: “O que
essa louca quer atrás de mim?”, posso ver a pergunta refletida em seus olhos
anfíbicos, que também me observam atentamente.
E o alfabeto sorrateiro
que se instalou em minha psique segue marchando catatonicamente em meu cérebro,
produzindo palavras com ou sem significado: felicidade, displicentencefalodolormente,
solidão, otromoaçaroc, rotina agridoce de cafeteria sem freguês, oasulised...
E as reações adversas
que a toda hora me suscita a literalidade das coisas percebidas me fazem
estarrecer diante da inércia que me vai tomando. Não. Não sou, ou não estou me
dessensibilizando. Apenas endurecendo e isso me assusta. Por que a dormência
nunca foi meu ser irrequieto. Mas essa voz em meu cérebro tem que se calar a
qualquer preço.
A tartaruga já
percorreu bem mais que cem metros: sou uma ‘stalker’ de animais. Essa tortura
quebra a paz deles e me concede certa satisfação: tentar capturar a foto que
marcaria a existência de um ser vivo num ambiente impróprio para a vida e sua
perpetuação. Talvez isso seja esperança?
Volteiam palavras em
minha catastrófica mente. A poluição sonora me abala os nervos. Fujo de vozes
humanas. Eu queria apenas o barulho de algo que não existe, enquanto isso ele
vai compondo estrofes com as palavras do alfabeto corriqueiro. Quero perseguir
a antiga ideia de que tudo é possivelmente remediável ou, ao menos, possível de
ser suportado.
Navegam peixinhos no
aquário poluído do canalete riograndino. Sinto falta das hortênsias que aqui
cresciam. Deslizo a mão pela amurada. Espreito mais uma vez a tartaruga,
coitada, que ainda se sente assustada de mim. Queria eu ser ela.
E o alfabeto, talvez,
será minha salvação ou perdição. Mas nada vai conseguir matar essa minha fome, pois a música açaima minhas
paixões aniquiladas. Não irão sobrar palavras, mesmo oriundas da inventividade,
para limpar a degradação que adentrou a cidade de forma tão inesperada.
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