Observando o home de marte que medita em minha mesa fico a imaginar quando foi que eu parti desta terra e ele me substituiu. Infeliz ou felizmente ninguém percebeu a diferença, que ele era eu e eu tinha escapado para outra exosfera. Quando foi que me ocorreu de partir desta forma, sem avisar nem mesmo a mim? Não sei. Apenas o vejo ali e sei que ele está em meu lugar e eu em outro qualquer que ainda não descobri qual é.
Esse homem que medita é muito estranho: careca, esquálido, o tronco não é ligado aos membros inferiores e o braços, apoiados nas pernas dobradas, é que sustentam a cabeça, recinto de tão profundas meditações. Ou será de rasas aspirações?
Mas o pior e mais assustador de tudo é que ele não possui uma face. Não tem um par de olhos, nariz, boca, orelhas ou qualquer expressão fisionômica que o identifique, que o distinga de outros de outros homens de marte e que possa me fazer dizer: "Este é o MEU homem marciano". É uma face lisa, afilada no queixo, que não permite que se descubra o que ele tanto pensa ou sente, ou se alguma dessas coisas nele existe.
Apesar dessa fisionomia inexpressiva, desse corpo estranho e de eu não me encontrar aqui, eu gosto desse homem marciano, ou que ao menos parece ser. Assusta-me sua idiossincrasia, sua estranheza e, talvez, o fato dele não ser humano, mas também me acalma olhá-lo, a ponto de, por vezes, acabar observando o dito espécime por alguns minutos eternos, enquanto tendo desbravar o mundo em que passei a existir quando ele me substituiu.
Na mesma mesa, mas um tanto distante, também vejo um cavalo. Entretanto, este é um cavalo terrestre mesmo. animal de minha mais alta estima na infância. Ele e o homem de marte não se comunicam, muitas vezes mal se olham. Contudo, parece existir uma certa cumplicidade entre ambos, pois quando ouço o relincho do alazão, gritando pelo seu pago, percebo uma leve mudança no homúnculo que tomou meu lugar e quase vejo surgir nele uma face.
Como seria a expressão dela? De alegria por ouvir um som tão estranho mas belo? De entendimento porque sabe o que o cavalo sente por estar sobre a mesa de um frio escritório? Ou de incredulidade por nãom entender porque o equino deseja o pago frio, em vez do aconchego desse lugar que agora é a casa de ambos?
E eu ainda perdida no meio da floresta distante do planeta mais distante, onde ninguém reside, penso no homem marciano que me substituiu e ninguém percebeu e no alazão que quer voltar para seu campo e não pode, porque ficou congelado numa lasca esculpida de madeira lustrosa, as crinas ao vento, como se ainda corresse pelo rincão...
então eu percebo, na face desfacetada do homem de marte, como um rápido lampejo de lucidez: ele observa a ambos e a si e não sabe mais a diferença entre os três entes que compartilham a mesma mesa de trabalho sem nunca trocarem uma palavra ou um brevissímo afago.
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