quinta-feira, 12 de junho de 2014

CLARICE

Eu nunca consigo ler Clarice de uma enfiada só. Ela me cansa e me descansa, me acalma e me agita numa imutável sensação de vai e vem. Ela pesa em mim como a pedra do caminho, que não é possível remover, e me deixa leve, como as palavras malditas que eu nunca consigo redigir.

Ela é tão "eu" e eu sou tão "ela" que chega a me irritar. Nada de parentescos, nem afinidades. Apenas um ódio meio cru por ela já ter dito o que eu queria escrever. E eu não a imito, não. Eu já rabiscava letras de meia boca antes mesmo de saber que ela existia. Nada temos em comum, a não ser um jeito meio parecido e diferente de dizer as coisas.

Por isso eu sublinho frases em seus livros, frases que para outros teriam um sentido diferente, mas eu sei bem o que ela não quis dizer. Não, nunca serei “Clarice” e ela nunca será “eu” (felizmente), mas há um desencontro tão evidente entre nós que isso quase nos torna irmãs: uma que nasceu "séculos" antes e morreu de dor e outra que ainda nem entende bem o que é. 

Depois nossos pais me pariram e me contaram a sua história. Foi quando ocorreu o grande  encontro, através dos livros da vida, e nos fizemos uníssonas em uma doce e malévola desunissonidade.

A música das nossas teclas também nos separou. Somos eternamente inimigas que convivem salutarmente uma com a outra. Certamente, não há como nos comparar tão diversamente iguais somos. Ela diz tudo e nada e eu escrevo apena o meio.

Então, meu coração se desloca para algum lugar entre o estômago e o diafragma. Está agora ali, comprimido entre os dois órgãos, sem bater normalmente, acometido de descompassos involuntários, como os soluços que, às vezes, tomam uma pessoa de assalto. 

E como se livrar do soluço ou do coração descompassado?

Eu não sei. Ela pensou que sabia, mesmo afirmando que não compreendia nada. Era uma desconhecida para si mesma, assim como eu a conheço tão bem. 

Por esta simples razão eu conduzo meus passos com vagar e desconfiança enquanto a leio, porque sei que ela planejou descaradamente me enganar, visto que acreditava que eu clamaria ao mundo que sou daquelas pessoas que sabem, entendem e percebem tudo sobre o “outro”, mesmo sem saber nada sobre si.

Também por isso eu não respondo nada ante as acusações que ela me faz a respeito da minha falta de modéstia literária e psicológica; da minha falta de sabedoria íntima e interpessoal; da minha crença arraigada de que algo existe além de nós mesmos, dela e eu. 

Eu não revido seu sorriso de deboche contras as minhas verdades e mentiras, porque bem sei que, quando ela faz isso, acaba rindo de si mesma na mesma proporção, embora ela nunca admita.

Assim, eu apenas leio Clarice. Com um senso de urgência; de vida e de morte; para que ela não me assassine antes que eu escreva o que ela não teve coragem de declarar abertamente. 

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