terça-feira, 30 de julho de 2013

JANE DOE*


Acontecia assim, de repente, como se nada fosse, como se não importasse realmente. Simplesmente ela sentia que tudo ficava lentamente calmo, como a calmaria que ocorre antes de uma calamidade. E aí acontecia.
Ela estava na sala ouvindo músicas de diferentes estilos como de hábito. Ela estava sentada no sofá onde seu gato dormia diariamente e, às vezes, também usava como banheiro.
Gatos velhos sofrem de incontinência urinária eventualmente.
Ela havia lavado o sofá que ia se desfazendo aos poucos, seja pelo ataque das garras do felino, seja pela necessidade de ter que lavá-lo mais seguidamente devido ao problema do bichano, seja porque o tempo passava, embora ela nem sempre percebesse.
Então ali estava Jane Doe (que nome seus pais escolheram!) deitada no sofá, lendo e escutando música. Ela bem poderia ter optado por estar dançando, mas isso fora algo de que abrira mão fazia algum tempo. Ela estava ali, tentando ouvir a música sem balançar os pés e curtir a leitura quando ocorreu o fato costumeiro.
Jane Doe simplesmente evaporou.
Sumiu.
Talvez tenha deixado de existir.
O fato importante é que ela desapareceu sem deixar rastros. Algo banalmente se apagou (seriam as luzes baças utilizadas nos abajures para deixar o ambiente mais aconchegante, mesmo que ela percebesse que ali isso não seria possível?).
Jane Doe se foi e ninguém notou.
Não havia ninguém no apartamento de dois quartos para sentir sua ausência, além do gato embrutecido pelo tempo que sua vida animal lhe concedia. E talvez ele somente sentiria a falta da dona quando a comida em seu prato terminasse ou a água em seu pote ficasse choca.
Jane Doe não era exatamente uma pessoa insignificante, sem características que a distinguisse. Ao contrário, possuía alguns hábitos e gostos meio exóticos, que a tornariam meio inesquecível para as pessoas com quem convivesse. Mas justamente por isso, ela fazia questão de ser invisível.
Jane Doe já tinha experiência suficiente para saber como as pessoas esquisitas são vistas pelas demais.
E foi por isso que num dos cadernos, em que costumava fazer apontamentos durante a faculdade, ela escrevera: “Às vezes, eu gostaria de não ter pena de quem não tem pena de mim”. Suspirou e fechou o caderno. Nunca mais o usou.
Um dia, fazendo uma faxina, ela redescobriu a frase.
Fez o caderno desaparecer.
No fogo.
Ela tinha gravado a frase a ferro e fogo na sua memória, embora não conseguisse lembrar porque a havia escrito. A causa tinha sido obliterada de sua mente. Fora escrita na primeira vez que ela morreu.
Numa outra ocasião em que desapareceu ela rabiscou outras palavras esquisitas, que depois apagou meticulosamente, embora as marcas do que tinha escrito tenham sido impressas nas cinco folhas seguintes e poderiam ser relidas por alguém mais atento, ou que empregasse a técnica certa.
Jane Doe escreveu nessa ocasião:
“Eu já morri faz tempo. Só me esqueci de aceitar”.
É, Jane era estranha mesmo.
Seria por isso que ela costumava desaparecer?
Por que era isso que estava ocorrendo outra vez. Ela estava desaparecida já há cinco minutos. Não havia indicação de que ela retornaria, ou quando, ou se. Apenas a ausência poderia ser sentida, embora ninguém houvesse percebido.
É como aquela história da árvore na floresta Se uma árvore tomba no meio da mata, algum som será produzido, ou ouvido? ou coisa parecida, não lembro bem de como foi escrita essa frase, mas o sentido é esse.
Será que alguém perceberia que Jane Doe sumira se nenhuma pessoa estava presente, ou convivia intimamente com ela? Será que seu gato sentiria sua falta ou apenas da comida que ela lhe dava, como alguns céticos costumam argumentar sobre bichanos alheios ou próprios? Será que Jane Doe sentiria sua própria ausência? Sua provável morte ou abdução seria alvo de tristeza?
Então o fato era este: Jane Doe desapareceu já faz 1 hora, de seu sofá velho e levemente fedorento.
Alguém duvida? Alguém percebe o silêncio dessa falta? O deslocamento dos átomos quando algo desse tipo ocorre? Alguém consegue pressentir que uma pessoa está ausente do planeta?
Por que minha experiência me diz que, quando essas coisas ocorrem, a falta pode ser notada por qualquer um, pois parece que sobra um pouco mais de oxigênio na atmosfera, que existe mais espaço livre para transitar, que algo é deslocado no tempo.
Toda ausência pode ser sentida.
Mas acredito que poucos são aqueles que percebem os desaparecimentos súbitos de pessoas aparentemente invisíveis, pré-mortas.
Jane Doe está desaparecida, quem sabe agora morta, há 24 horas. Ninguém ainda percebeu, ninguém acionou nenhum socorro, ninguém questionou os indícios do desaparecimento.
Ontem ela havia escrito em um guardanapo de papel, na padaria em que habitualmente tomava seu café, no intervalo do trabalho num escritório onde nenhum funcionário possuía um rosto específico:
“Eu vou desaparecer de vez. Agora eu aceitei os fatos”.
Jane Doe se levantou e foi embora.
A moça que recolheu a louça que ela usou no lanche e que a via sem ver todos os dias leu a frase, enrugou a testa, ficou meio preocupada. Olhou ao redor e viu uma moça se afastando, mas não tinha certeza se era a mesma que estava sentada ali. Quis chamá-la, pois sentiu uma leve inquietação, mas a cliente silenciosa se misturou com os fregueses mais conhecidos da padaria e a atendente a perdeu de vista.
Releu a frase, deu de ombros e pensou:
“Deve ser uma bobagem”.
O gato fugiu pela janela da cozinha, que ela deixava entreaberta para ele poder entrar e sair, quando a comida e água afinal acabaram. Foi acolhido pela vizinhança que o alimenta e cuida com pena dele que não tem ninguém por si.
Jane Doe já está desaparecida há cinco dias quando termino de escrever isto, sabendo e tendo sentido todos os indícios de sua abdução. Volta e meia o gato retorna ao seu antigo lar, fica miando alguns minutos e cheirando a roupa da dona desaparecida.
Ninguém mais se importa.

Somente o felino sente a falta de Jane Doe.

*Publicado na Revista SAMIZDAT, edição 37:

Um comentário:

Robroy disse...

Como deixei no facebook: é muuuito chique. Não o texto, mas o fato de tê-lo publicado numa revista de tamanho respeito. Fico feliz em acompanhar aos poucos os frutos do seu bom trabalho e talento, em breve terei concorrentes à altura para o título de fã número 1 (se é que já não tenho, ou pior o perdi :[)... Suas histórias são sempre assim, bem misteriosas, ao menos pra mim. A riqueza de detalhes permite que eu recrie cada ambiente, sem nem mesmo fechar os olhos, e transportar-me para lá. Esse conto faz o fato mais corriqueiro de uma pessoa comum, tornar-se um acontecimento sobrenatural. Bom, acho que me identifiquei. Acredito que tenha feito narrações do futuro, e apesar de minhas suposições só você poderá descobrir o que houve comigo, digo, com Jane Doe. Pra variar, me deu ideias para que eu escrevesse algo. Meu caderno de palavras pagadas, deve muito à sua criatividade e quer mais, mais e mais... Escreva maaaaaaaaaaaais!